"Esquerda Canibal: sobre a tática de disputa das vanguardas", por Djalma Nery

Publicado originalmente no Outras Palavras.


1) Pra começar, pessoas


A busca por pessoas é um elemento comum e indispensável à qualquer organização política. Todas necessitam de indivíduos que referendem, construam e aprimorem suas existências a partir de práticas e ideias, e que, também, defendam seus programas. Sem gente, nada acontece.

O perfil destas pessoas e o local aonde são captadas variam entre as organizações, que possuem distintas concepções do que é – e como deve funcionar – um partido. De maneira genérica, de um lado, podemos identificar grupos que não apresentam critérios éticos ou ideológicos bem definidos para arregimentar filiados; do outro, organizações que trazem uma lista de expectativas, valores e referências para se aceitar alguém como membro, com etapas prévias ao momento oficial da filiação.

Como os partidos fisiológicos1 não podem se dar ao luxo de dispensar militantes, pois precisam gerir os espaços e máquinas que hegemonizam, trata-se do pólo menos restritivo desta equação. Os aspectos para se aderir ou fundar um desses partidos em um município são, majoritariamente, de ordem burocrática, estando a dimensão ‘pragmática’ muito mais presente em detrimento da ‘ética’. O mínimo de vivência e participação nos mostra que tais partidos são, em geral, considerados de ‘direita’, ‘centro’, ou mesmo ‘centro-esquerda’.

É na esquerda que encontramos organizações aonde o processo de inserção é mais lento e seletivo, pois baseado em uma análise dos indivíduos que delas se aproximam. Isso traz benefícios e também dificuldades. De um lado, o crescimento e alcance dessas organizações fica restrito a um grupo seleto da sociedade que partilha de determinadas ideias e valores prévios; de outro isso garante uma maior coerência, unidade e força política para o grupo.

‘Política’ é algo feito por seres humanos – ela não existe em abstrato. Pessoas são portadoras de valores e práticas que, por sua vez, darão a tônica das organizações que constroem. Em uma metáfora: indivíduos são o principal ingrediente para a existência de um partido.


2) Que pessoas?



Observando o resultado das eleições municipais deste ano, e a partir da experiência pessoal mais intensa do último período, saltou-me aos olhos algo que considero um equívoco metodológico na atuação de setores da esquerda brasileira: fazer de sua fonte prioritária de captação de militância as fileiras dos iniciados e iniciadas. Em outras palavras: a vanguarda.

Quem se identifica e é considerado apto a integrar estas organizações, são, em geral, como mostram as estatísticas, pessoas com considerável grau de instrução, e que tiveram tempo, condições e inclinação para se debruçar sobre estudos e reflexões, edificando suas posições políticas para além do senso comum construído pelo pensamento dominante.

Isso faz com que esses partidos acabem se comunicando mais com estes setores, e disputem um público limitado que, muitas vezes, já se encontra organizado em outros grupos e partidos, por entender a importância da participação política direta. Isso cria um círculo vicioso, pois aproxima cada vez mais indivíduos com este perfil, levando as organizações a especializarem ainda mais sua comunicação.

Fenômenos como os mapas de votação do PSOL (em especial no Rio de Janeiro), demonstram que a esquerda obteve melhor desempenho entre setores mais instruídos e abastados da sociedade, ainda que defenda pautas que privilegiem aqueles em situação de vulnerabilidade. Isso porque, para nos comunicar, partimos de nossas concepções daquilo que é ‘melhor’ à todos e todas; e nem sempre tais concepções são partilhadas. Assistimos então a uma inversão: parte da classe média defendendo um programa que beneficiará os mais pobres que, por sua vez rechaçam tal programa, por não se sentirem por ele representados.

Em síntese: para que as pessoas se sintam parte de um projeto, precisamos estar aptos a ouvi-las e aceitá-las da maneira como são, ainda que suas formulações e características não nos agradem. Não faz impor um programa pronto, calcado única e exclusivamente em nossa visão (a visão de um grupo reduzido) daquilo que é melhor para todos. Para isso, nossa comunicação deve ser estratégica, abolindo terminologias herméticas, desgastadas, e as que não somos capazes de explicar em poucas palavras; e temos de aprender a lidar tranquilamente com reflexões e posições que nos parecem completamente equivocadas.


3) Ampliar fronteiras de recrutamento



Então, ao invés da esquerda buscar incorporar setores distintos daqueles que normalmente atinge – o que eventualmente poderia significar abrir mão de determinados símbolos e discursos –, observa-se uma tendência a disputa endógena das vanguardas que transitam entre diversas organizações para contemplar sua militância. Assim, PSOL, PCB, PSTU, MAIS, RAIZ, Brigadas Populares, MRT e vários outros agrupamentos disputam militantes entre si para se construir. Mas se os entendemos como pertencentes a um mesmo campo, a despeito de suas divergências, é possível afirmar que seu crescimento se baseia em uma prática canibal – incorporam derivações de si mesmos para fazer crescer outras derivações.

Afeitos a certa “zona de conforto”, muitas vezes, optamos por abordar preferencialmente pessoas predispostas a nos ouvirem. Porém, nunca foi tão urgente nos lançarmos ao diálogo para com públicos heterogêneos, distintos e, por vezes, até mesmo antagônicos às nossas expectativas. Nisso exercitar empatia e fraternidade ao tratar com maturidade as divergências mais extremas, abrindo mão de purismos e principismos, e percebendo que política é a arte do diálogo.

A exemplo disso, temos a relação com os setores religiosos da sociedade, em especial os evangélicos, vistos como uma das maiores ‘ameaças’ para o avanço das forças progressistas no Brasil, já que se lançaram em um projeto de poder (especificamente os setores neopentecostais fundamentalistas) que tem obtido relevante sucesso tendo em vista sua representatividade cada vez mais numerosa nos espaços eletivos e de tomada de decisão. A fábula do Estado laico se dissolve, com cultos realizados dentro dos parlamentos, crucifixos e leituras de bíblias cristãs coroando a liturgia das sessões ordinárias e extraordinárias das Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e do Congresso Federal.

No entanto, não podemos tratar estes setores como se fossem uma massa amorfa, doutrinada e perdida. São pessoas, cujas subjetividades foram formadas pelas experiências que viveram e pela sociabilização que lhes foi possível. Existe muita gente boa com quem dialogar, mas isso exige que não desistamos no primeiro obstáculo, ao menor sinal de racismo, machismo e homofobia, reagindo com rechaço, raiva ou violência. Afinal, esta é a grande contradição da esquerda: querer organizar as massas, mas esperar pelo surgimento de pessoas cujos comportamentos esteja além daquele das massas. Como bradar estar ao lado do povo e, ao mesmo tempo, não aceitar a consciência geral que ao povo é imposta pelas classes dominantes? Claro que existem exceções, e é justamente ao conjunto destas exceções que chamamos vanguarda. Se apenas elas estão em nosso campo de disputa, pouco conseguiremos transformar substancialmente, apostando em táticas hierarquizadas onde sempre se fará necessária uma “direção” formada por setores mais avançados para ‘conduzir’ as massas.

Ampliar as fronteiras de captação de militância, trazendo pessoas de ‘fora’ para uma perspectiva crítica e progressista de sociedade deve ser uma das nossas grandes tarefas para superar esse canibalismo que impede o real crescimento das organizações de esquerda, relegando-as à marginalidade.

Em resumo: abrir mão de jargões, purismos e, principalmente, da percepção de que a esquerda e seus militantes são moral ou intelectualmente superiores. O povo não está interessado em discutir as etapas de implementação do socialismo; e não adianta artificializar processos. As pessoas querem é melhorar de vida, ainda que seja aos pedaços; e isso só pode ser ignorado por quem não precisa realmente de mudanças imediatas, e pode esperar. É importante dar atenção às questões práticas e urgentes da vida cotidiana, e nos aproximar ombro a ombro de quem vive à beira do abismo.

Sobre a relação e a importância das igrejas, uma pequena citação que li no Blog de Douglas Belchior, que me fez entender muita coisa:

“Que outra organização social brasileira tem a flexibilidade de aceitação do outro e a capacidade de empoderamento tal qual se vêem nas pequenas e médias igrejas brasileiras? Nenhuma.”2


4) Superar o canibalismo; dialogar sempre



A maior parte da população, politicamente falando, reside em uma grande área cinzenta indeterminada. Não há um cenário de “avanço do conservadorismo” tão preocupante e alardeado pela esquerda. Existe sim um avanço do desinteresse e da desilusão que abre brecha para setores organizados e abastados. Não podemos atribuir à população em geral os anseios de um Bolsonaro.

Precisamos falar com as pessoas. Inclusive com aquelas que votam e apoiam candidatos conservadores por inércia, por identidade, desconhecimento ou qualquer outra questão; e que tem visões pejorativas de movimentos sociais organizados e combativos, provavelmente forjadas pela grande mídia e pelos aparatos de comunicação.

Para sairmos da marginalidade, será preciso abandonar esta conduta canibal de incorporar apenas os setores e indivíduos ideologicamente próximos de nós, e adentrar num mundo de desafios que é nos relacionarmos com subjetividades e indivíduos complemente distintos dos que estamos acostumados. Aceitar o que as pessoas tem pra nos dar. Disputar a vanguarda é uma prática que estimula o comportamento fratricida da esquerda, ávida por novos quadros; é preciso sobretudo disputar a consciência e o coração das pessoas comuns, não apenas a partir de nossos próprios referenciais, mas ouvindo a aprendendo com sinceridade.

Será preciso paciência, método, humildade e sabedoria.

Não há outro caminho possível.

Ao trabalho.

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