"PEC 55/241 e o AI5: o golpe dentro do golpe", por Roberto Requião


Fico sabendo que o senhor presidente desta Casa e os senhores líderes programaram para o dia 13 de dezembro a votação final da PEC 241/55.

Esta data cai à fiveleta, como diriam os portugueses. Não sei se foi escolhida ao acaso ou sugerida gaiatamente por algum bem-humorado líder oposicionista.

Afinal, foi em um dia 13 de dezembro, há 48 anos, também com o apoio irrestrito e entusiasmado do empresariado e da mídia, que editou-se o Ato Institucional N° 5, a mais radical e destrutiva das intervenções do governo militar na vida brasileira.

O AI-5 representou uma flexão à extrema-direita dos golpistas de 64.

Foi um golpe dentro do golpe, definindo com mais clareza, sem pruridos ou rebuços, os novos rumos do regime. Como disse o ministro Passarinho na reunião que aprovou o Ato: “Às favas com os escrúpulos”.

Assim como o AI-5 há quase cinco décadas, a PEC 241/55 também representa um projeto de poder e traz em seu coração, igualmente, truculência, ferocidade, impiedade e ódio de classe. E manda às favas qualquer escrúpulo na rendição ao mercado e à globalização.

Logo na sequência do Ato 5, o governo militar disparou uma ampla e massacrante campanha publicitária.

Ela tinha como apelo central o dístico “Ame-o ou deixe-o”, estigmatizando, ferreteando como “inimigos do Brasil” aqueles que se opunham.

Não havia meio termo: ou você aceitava a ditadura militar e todos os e seus horrores ou você era tido como traidor da pátria.

Hoje, farsescamente, pois sabemos que a história não se repete a não ser como bufonaria e pantomima, as duas campanhas em defesa da PEC 55 que estão na rua, uma do governo e outra do mercado, ressuscitam o mesmo apelo dicotômico, maniqueísta, faccioso e fascista pós AI-5.

Fico cá imaginando a quem teria ocorrido explorar hoje, como se explorava nos anos 50, 60 e 70 a fobia anticomunista.

Sei lá, quem sabe tenha sido ideia daquela senhora que a ver a bandeira japonesa entrelaçada à bandeira brasileira, em um painel na Câmara dos Deputados, horrorizou-se com o avanço da vermelhidão comunista sobre os nossos símbolos.

Sei lá….

O mercado entrou firme nessa briga para garantir que se corte tudo, reduza-se tudo, menos os juros da dívida. A campanha do mercado, sem delongas ou pejo, foi beber diretamente no “ame-o ou deixe-o” da ditadura militar que, por sua vez, bebeu, em linha reta, no nazi-fascismo dos anos 30 e 40.

E em sua variante norte-americana dos anos 50, o macarthismo.

O conceito básico da campanha do mercado, à qual se associou a grande mídia, é o mesmíssimo conceito usado pelo nazi-fascismo e pelos ditadores latino-americanos para estigmatizar os indesejados, política, social e racialmente.

Como os fascistas, a campanha do mercado reúne diante de um muro, para fuzilamento inapelável e imediato, todos os que se opõem à fixação do teto de gastos. Se você é contra a PEC 241, você é contra o Brasil, decretam bancos, rentistas, sindicatos patronais e toda sorte de gigolôs e proxenetas do capital vadio.

Enfim, a campanha do mercado, em parceria com a mídia, não procura fazer pensar, convencer, estimular o debate. Nada disso. Ela tão simplesmente estigmatiza, sineta com o ferrete da segregação, do opróbrio os que divergem. Carimba como renegados, repudiados, proscritos os que são contra congelar por inacreditáveis vinte anos a ação do Estado na vida brasileira.

Pois é, quando a gente imaginava que esse tipo de apelo odiento, oportunista, tosco e larvar houvesse sido vencido pela civilização, ei-lo ressuscitado no Brasil.

Sabemos muito bem qual é a consequência da divisão da sociedade entre bons e maus, entre nós e eles. Esse corte dualista é extremamente perigoso, pois só faz aprofundar as contradições e os conflitos sociais.

Quer dizer, a defesa da PEC 241/55 flerta explicitamente com o fascismo, ao mesmo tempo em que desperta e estimula o espectro da luta de classes.

De fato.

A preocupação medular do governo, do mercado, dos rentistas, da grande mídia comercial, da classe média marchadora e batedora de panelas não é com as finanças públicas; com o equilíbrio ou desequilíbrio das contas, com o desemprego, com o enferrujamento e sucateamento das máquinas da indústria nacional.

O projeto de poder embutido na PEC 241/55 passa ao largo dessas inquietudes. Elas são apenas pretexto para engambelar a massa, que eles consideram “rude” e “ignara”, e convencer Eremildo, “o idiota”, da necessidade de doar ouro para o bem do Brasil: isto é: renunciar ao bem-estar social, abrir mão do salário, do emprego, da aposentadoria, da casa própria, e de outros sonhos.

O projeto de poder entranhado na PEC 241/55 reordena o orçamento, os gastos públicos, as prioridades governamentais segundo os interesses de classe do mercado.

O ministro da Saúde, sempre muito espontâneo na revelação do que pensa, por isso mesmo aquele que melhor expressa o projeto de poder da PEC 241/55, afirma, por exemplo, que a universalização do atendimento à saúde é uma balela ideológica, porque não há dinheiro para tanto.

Quer dizer, morrer na fila do SUS, na espera por cirurgias, por falta de remédios ou tratamento é uma fatalidade à qual o país precisa se acostumar. E querer impedir que isso aconteça é “ideológico”, é esquerdismo, é coisa de comunista...

Já um outro ministro pregou contra a “cultura do benefício grátis” do brasileiro.

O brasileiro, segundo ele, deve ser desmamado dessa mania de querer escola grátis, saúde grátis, segurança grátis, aposentadoria... Para ele, o povo é o responsável por sua própria desgraça, já que, ao querer benefícios grátis ou subsidiados, sobrecarrega o orçamento público, desequilibra as contas; enfim, provoca toda uma cadeia, um dominó de consequências “funestas”.

Como o malandro, da ópera de Chico Buarque, que ao não pagar a cachaça no botequim provocou uma crise internacional, já que o prejuízo da cachaça não paga foi sendo repassado, encadeando prejuízos, da mesma forma, a PEC 241/55 atribui todos os males ao povo e à sua insaciável demanda por escola, hospital, casa própria, segurança, aposentadoria, aumento de salário…

E (pobre) malandro
autuado
é julgado e condenado
pela situação…
diz a letra da música de Chico Buarque.

Mutatis, mutandi: e o trabalhador autuado, pela PEC 2541/55, é julgado e condenado pela situação.

Enfim, a PEC 241/55 não é tão simplesmente uma emenda constitucional como tantas que tramitaram e tramitam pelo Congresso. É muito mais que isso.

Insisto, repito, grito. A PEC 241/55 é um projeto de poder. 

Um projeto de poder neoliberal, ultraconservador, excludente que, externamente, amarra o Brasil à globalização neocolonial e que, internamente, dobra-se aos rentistas, às elites agroexportadoras e ao que há de mais atrasado, inculto, provincial e reacionário em nossa sociedade.

A PEC 241/55 é a revogação da Constituição de 1988 e, como o tal, é mais um golpe, pois revoga a Carta Magna sem que para isso se convoque uma Constituinte. Por emenda constitucional, impõe um projeto de poder que é a antítese do espírito da Constituição de 88.

Isso é ou não é um golpe de Estado?

E, como o AI-5, é um golpe dentro do golpe que derrubou a presidente Dilma.

Como diria Mino Carta: nunca subestime a capacidade de nossas elites de regredir, de restabelecer o mundo da casa grande e da senzala.

Foi uma ilusão, é uma ilusão, a que eu próprio cedi, achar que havia ou há consciência democrática nas classes dominantes brasileiras.

Quando elas não se sentem seguras, quando seus privilégios correm risco, elas não vacilam um segundo em golpear as instituições democráticas.

Depois do golpe do impeachment, o golpe contra a Constituição de 1988, o golpe contra o Estado de Bem-Estar Social.

Senhores e senhoras Senadores. 

Em pronunciamentos nesta tribuna, nos debates na CAE e na CCJ, afirmei que a PEC 241/55 pode levar o país ao conflito civil. Senador vem do latim senecti, isto é, os mais velhos, em consequência, mais experientes, mais sensatos, mais responsáveis. Logo é de nossa obrigação evitar que o país se conflagre.

Qualquer um pode perceber isso. Basta que se tenham olhos e ouvidos abertos à realidade nacional. 

De 2013 para cá, fermentam-se a radicalização e a intolerância no país. Na internet, nas redes sociais, nas ruas transbordam-se manifestações arrepiantes, medonhas.

O ódio libera-se, berra, proclama-se e se transforma em tragédia, como no dia 15 passado, em Goiânia. Segundo os jornais, lá, um pai, depois de uma conflituosa discussão, matou o filho e suicidou-se por não aceitar o envolvimento do rapaz em movimentos sociais, por divergir dele em relação à ocupação de escolas.

No Paraná, em Curitiba, esse tal do MBL, tão incensado pela mídia e aqui no Congresso, organizou-se em milícias para desocupar escolas em posse dos estudantes contrários à PEC 55 e à reforma do ensino médio.

Flagrados, fotografados, filmados, identificados esse arremedo histriônico das SAs Nazistas agiu sem qualquer impedimento de parte do governo e da polícia. Nenhum editorial furibundo da imprensa local apostrofou os baderneiros, afinal, na visão de nossa mídia comercial, tratava-se de “baderneiros do bem”, “nazistas do bem”. Como aliás, via a grande imprensa da época até a véspera da Grande Guerra.

Como já disse, que a história não se repete a não ser farsescamente, temos aqui a ameaça de uma reanimação do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, como era chamado a versão do MBL ativo nos anos de chumbo da ditadura. Mero braço auxiliar da repressão estatal e policial contra os democratas.

E, dias passados, um desses tantos grupelhos fascistas que se organizam no país tomou a Câmara dos Deputados e o fez, certamente, com alguma cobertura, pois como todos sabemos, especialmente nós da Oposição, é muito difícil o acesso de militantes às casas do Congresso. Dentro do plenário esse acesso sempre foi impossível, até esse dia...

O ovo da serpente, mais uma vez, incuba-se pela incúria, pela temeridade e pela imprudência das classes que dominam o país.

Senhoras e senhores senadores.

Os Dicionários Oxford, editados pela Universidade de Oxford, Inglaterra, escolhe, anualmente, a palavra do ano. A palavra deste ano é pós-verdade.

Pós-verdade é a irrelevância da verdade. É a banalização, a insignificância da verdade produzida pelos meios de comunicação, pelos tais formadores de opinião, pela máquina política que tritura a realidade dos fatos. É a contrafação da verdade que se impõe como verdade.

A PEC 241/55 é um bom exemplo de pós-verdade.

Qual é a verdade?

A verdade é que a PEC 241/55 é um projeto de poder neoliberal, concentrador de riquezas e de rendas, antipopular e antinacional. 

A pós-verdade, que os meios de comunicação e o mercado vendem ao país, é que a PEC 241/55 torna-se necessária para fazer país crescer, para combater o desemprego, para equilibrar as contas públicas e outras falsificações da realidade.

A verdade é que a PEC 241/55 vai muito além de uma reforma constitucional.

A pós-verdade, impingida ao país e aos brasileiros, transforma investimentos e compromissos sociais e constitucionais em gastos, em despesas, em desperdício do dinheiro público, em sobrecarga ou carga morta sobre o orçamento.

Fico aqui matutando, especulando, perguntando: será que o governo não se deu conta? Será que esta Casa não de se deu conta do buraco que se cava sob os nossos pés?

Acho que sim.

Penso que se deu conta e já está se preparando para o que há de vir; pois, em perspectiva, o único caminho que resta ao governo e aos seus apoiadores no Congresso, na mídia e no mercado é preparar a repressão contra a inevitável revolta popular.

Dezenas de milhões de brasileiros que pela primeira vez em 500 anos experimentaram as delícias de se fazer três refeições diárias, de tomar banho quente, de viajar de avião, de comprar um carro e uma casa própria, de botar o filho na faculdade não vão permitir que sejam novamente trancados na senzala.

Não se trata de meu desejo. A pós-verdade, como falsificação da verdade, não há de resistir à realidade dos fatos.

Quem viver, verá.

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