A esquerda, a advertência e a promessa


Por Aldo Fornazieri, Professor da FESPSP, Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

"Não resta dúvida de que a esquerda, nas suas diversas matizes e pluralidades, vive uma crise que se projetou ao longo do século XX, com o stalinismo e com a socialdemocracia, que se prolonga no tempo e que se agrava nos dias de hoje. O colapso soviético, os rumos do comunismo chinês, o adesismo socialdemocrata ao liberalismo e os descaminhos da esquerda latino-americana deixaram pouco mais que escombros de uma tradição socialista e, em geral, marxista, que se pretendeu redentora da humanidade, radicada na promessa de uma terra de igualdade, justiça e liberdade.

Existem várias causas e várias explicações para o fracasso e crise da esquerda. Mas, talvez, uma delas, quem sabe a mais importante, tenha sua origem genética na forma com que a esquerda vê o ser humano e o processo histórico. A rigor, o pensamento político antigo e moderno se inscreve em duas grandes linhas constitutivas: a realista e a utópica. A forma como essas duas linhas percebem o ser humano e a história e os dois elementos incontornáveis da política – a advertência e a promessa ou o medo e a esperança – são praticamente divergentes.

No mundo grego, Platão, seguindo Sócrates, projetou o ideal de uma polis perfeita, governada por filósofos-reis, operadores de uma ciência verdadeira, retratado na República. Em que pese em obras posteriores Platão ter manifestado um certo desencanto com a possibilidade de um competente único existir e governar sem arbítrio acima das leis, coube a Aristóteles indicar que a ciência pouco opera na política e que esta está mais afeta à vontade e às escolhas, situando-se no terreno da contingência e da imprevisibilidade. Mais realista, não é por acaso que Aristóteles irá resgatar vários temas da tragédia colocando a ênfase na necessidade da prudência. A tragédia, de fato, é um canto à condição humana radicada no seu final infeliz, ao caráter muitas vezes violento da morte no âmbito das disputas e à incapacidade dos seres humanos dominarem seu próprio destino que, com frequência, os aprisiona nas armadilhas do imprevisto. Tanto na tragédia quanto em Aristóteles o espaço para o otimismo é exíguo: o mundo é sempre inacabado, pleno de lacunas e cabe aos homens tentar acabá-lo num processo sempre inconcluso.

A Jeremiada Política


Mas é na Bíblia, através do profeta Jeremias onde os pares antípodas da advertência e da promessa e do temor e da esperança adquirem uma hierarquização de contornos dramáticos. Herarquização que se projetará no discurso político do republicanismo moderno que emerge no final da Idade Média no norte da Itália e se afirmará na colonização puritana dos Estados Unidos e na ideologia que conformará a sua independência e o seu constitucionalismo.

O sentido manifesto da jeremiada política é a ênfase na advertência. A persistência no pecado, no erro, na indolência, resultará na punição, na tragédia, no cativeiro, na perda da liberdade e na destruição de Jerusalém. Foi isso que aconteceu aos hebreus pela sua vida no pecado, pela idolatria, pela devassidão e pelos seus erros políticos. Os babilônios os escravizaram e destruíram o templo de Salomão e a sua cidade. Os estudiosos da jeremiada a sintetizam nos seguintes termos: descrição de degeneração e decadência; anúncio de um fim iminente que se manifestará como um apocalipse, uma destruição; convocação para a transformação reformadora, conversão, revolução,ação para as boas obras.

Os primeiros termos dessa equação rementem para a advertência e, os segundos, para a promessa. Há uma clara hierarquia da advertência sobre a promessa, do temor sobre a esperança. A promessa e a esperança só se efetivarão se a advertência e o medo do castigo forem observados. Em termos políticos coloca-se a ênfase na crítica e na autocrítica com apelo para a renovação moral e espiritual. As exortações definem a identidade comunitária ou política e conformam a unidade capaz de transformar e renovar o mundo, de fundamentar o desejo de uma nova ordem, estabelecendo o momento afirmativo da promessa e da esperança.

A jeremiada cria a disciplina para o processo de empreendimento a ser conquistado e gera uma ansiedade pelo futuro. Mas o futuro da jeremiada não é uma certeza utópica, um estado ideal, uma completa felicidade, uma harmonia absoluta. O futuro da jeremiada é ambivalente: nele está o medo e a esperança. O futuro se manifesta como um processo permanente de construção baseado na fé, mas nunca estará inteiramente ao nosso alcance e não há certeza de salvação. O que move os humanos para a busca da segurança, da justiça, da igualdade e da liberdade é essa insegurança permanente e o temor do castigo e da decadência. Os líderes autênticos, os líderes virtuosos, colocarão sempre a ênfase na advertência e apresentarão a promessa em termos condicionais.

A Republicanização da Jeremiada


Os republicanos do norte da Itália e, particularmente, Maquiavel, compreenderam perfeitamente o significado da jeremiada política. Maquiavel, entre outros, propôs uma república fundada na advertência. Esta proposição tinha sua raiz fincada na avaliação negativa da natureza humana: os homens são pérfidos, ambiciosos, covardes e simuladores e o mundo está dominado pelos malvados. Por isso, quando o legislador fizer as leis deve partir do pressuposto de que todos os homens são malvados, mesmo que na prática todos não o sejam. Os homens só fazem o bem por necessidade ou quando são coagidos a fazê-lo, adverte o escritor florentino.

Os líderes dos colonizadores puritanos da Nova Inglaterra valeram-se exaustivamente da jeremiada, tanto para levar os deserdados religiosos da Europa para a América, quanto para organizar a vida nas colônias. A vida de sacrifícios, de privações e de provações sempre foi enfatizada como condição para alcançar a nova Canaã, de ser o novo povo eleito, de construir a nova Jerusalém no alto da colina para guiar o mundo.

No processo de independência e de criação da Federação e aprovação da Constituição, a jeremiada foi laicizada com forte ênfase na advertência: o que estaria em jogo com a República e a Federação não seria apenas o destino dos trezes estados tornados independentes, mas o destino da humanidade; era preciso lutar contra o destino dissoluto das repúblicas; os homens são “ambiciosos, vingativos e gananciosos”; as tendências do futuro apontavam para um mundo envolvido em guerras por disputas comerciais; era preciso limitar e controlar o poder para evitar que este atentasse contra a liberdade; a própria necessidade do governo existir é a maior crítica que se pode fazer à natureza humana; somente um governo forte, equilibrado e limitado poderia garantir a justiça e a liberdade; somente observando esses preceitos os Estados Unidos poderiam se tornar líderes e contribuir para com os outros povos.

O Otimismo da Esquerda


As filosofias marxistas e socialistas, de modo geral, são utópicas. A sua ênfase é na promessa e na esperança. A humanidade conhecerá um fim da história onde haverá um reencontro entre o homem e o homem, entre o homem e a natureza. O proletariado aparece como sujeito imanente da história e a revolução será inevitável. Mesmo que essas filosofias sejam críticas da brutal realidade do capitalismo, todo o foco é posto na promessa.

A certeza do advento do socialismo se funda na visão otimista do progresso na história. O otimismo, por sua vez, gera uma disponibilidade subjetiva para o engajamento em um empreendimento estratégico que será necessariamente vitorioso. As filosofias de esquerda recusam terminantemente a possibilidade de uma natureza humana, pois o homem seria pura criação social e histórica. Já que a história se move por leis, as leis do progresso, não há razão para se preocupar com a advertência.

Embora marxistas como Antônio Gramsci tenham tentado reposicionar o pensamento de esquerda com a máxima “pessimismo da razão, otimismo da vontade” e com a ideia de que a história deve ser vista como drama e não como evolução, o fato é que a prática política desses movimentos e partidos se recusa, sistematicamente, em ver as contingências dos processos históricos e sociais e os riscos eminentemente trágicos incursos na humanidade, particularmente no mundo de hoje.

Quando no governo, a esquerda não só exaspera a promessa e a esperança, mas se torna ufanista, irresponsável e, dai, oportunista e mentirosa. Se fracassa, a culpa será sempre dos outros, o que constitui um grave pecado político, pois a esquerda se afoga na autocomplacência, na autocondescendência e na autovitimização. O recente descrédito dos governos de esquerda latino-americanos advém desse descuido com os erros, dessa falta de crítica e autocrítica, dessa adesão à condição degenerada e degeneradora do capitalismo, desse comodismo em face da normalidade e da naturalização da tragédia humana. Por isso, se a esquerda quiser dar um primeiro passo para se reinventar, pois os paradigmas que estão aí são escombros e ruínas, precisa enfatizar a advertência e moderar a promessa. Afinal de contas estamos numa encruzilhada civilizatória e os riscos da humanidade, do planeta, da democracia, da justiça e da liberdade são superlativos."

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