Análise afiada de José Luís Fevereiro

De Duterte, Brexit e Trump


Vivemos tempos difíceis. A ascensão de uma extrema direita anti-liberal com base de massas, é fenômeno de alcance planetário. A eleição de Rodrigo Duterte á presidência das Filipinas em maio passado comparando-se a Hitler e prometendo exterminar 3 milhões de viciados em drogas abriu o cortejo de resultados eleitorais que expressam que algo se move na direção errada no planeta. O fenômeno que dá liga entre esse resultado eleitoral nas Filipinas, à vitória do Brexit na Inglaterra e Trump nos EUA é o mesmo. Isto não significa que os atores possam ser comparados, nada nos autoriza a comparar quem quer que seja a Rodrigo Duterte, que entre outros despropósitos vem incitando “viciados” a matarem traficantes e a população a matar “viciados”. O traço em comum está no fato que todos estes resultados eleitorais são fruto do mesmo processo econômico e politico.

A Reestruturação Produtiva e a Globalização


A Segunda revolução industrial está morta; no seu lugar uma enorme reestruturação produtiva está em curso, com o avanço da robotização eliminando postos do trabalho e o deslocamento das plantas industriais intensivas em consumo de materiais , energia e mão de obra para os países da periferia, principalmente para a Ásia. Este processo produz vitoriosos e derrotados. Produziu ganhos significativos de renda em países periféricos, em particular na Ásia, mas também na África e na América Latina, mas aumentou a concentração de renda dentro de cada país. O rebaixamento dos custos de produção industrial decorrentes da robotização e dos menores custos salariais na Ásia, produziram um enorme barateamento do custos de bens duráveis , viabilizando o acesso destes produtos a milhões de trabalhadores pelo mundo afora. Mas deixaram atrás de si um rastro de destruição de empregos industriais na Europa, EUA e regiões industrializadas do Brasil.

O deslocamento do emprego para o setor de serviços, significou um aumento de empregos bem remunerados no setor financeiro e tecnológico para uma parte menor da população e um aumento de empregos de baixa qualificação no setor de comercio e serviços de baixa intensidade tecnológica para a maior parte da população. Os primeiros viram sua renda subir acima de média , sua cesta de consumo de industrializados baixar de custo e votaram contra o Brexit e em Hilary Clinton. Os segundos, a maioria, via sua renda cair em relação á media ,mas também em relação ao patamar anterior e votaram pelo Brexit e em Donald Trump. Em comum com o filipino Duterte, os vitoriosos destes processos eleitorais construíram um “inimigo” de fácil identificação; para Duterte, os “viciados”, para os defensores do Brexit, a emigração e a União Europeia, para Trump, a emigração e a China. É sempre bom lembrar que nos anos 30, para Hitler os culpados da crise eram os judeus.

Robert Paxton, em A Anatomia do Fascismo, cita frase de George Sorel de 1908 criticando Marx por não ter percebido que a historia não avança inexoravelmente para o socialismo “uma revolução alcançada em tempos de decadência pode tomar como ideal uma volta ao passado, ou até mesmo a conservação social”. As bases sociais tradicionais da esquerda nos cinturões industrializados da Europa, EUA e Brasil não mais existem. Porque estes cinturões industriais não mais existem no mínimo com a configuração que tinham há 30 anos atrás. Fora do centro financeiro de Londres, prevaleceu o Brexit com vitorias expressivas nas antigas áreas industriais. Hilary perdeu a eleição na Pensylvania, Ohio, Michigan e Winscosin, estados industriais decadentes e o PT perdeu as eleições no ABC. Não foi uma derrota conjuntural, embora a conjuntura tenha tido seu peso; é uma nova configuração politica que chegou para ficar.

O dilema da Esquerda


A esquerda, tal como aprendemos a conhecê-la, construiu seus aparatos políticos, partidos e sindicatos, a partir da segunda revolução industrial onde expressivas concentrações operárias formaram a sua base social por excelência. Para o marxismo, classe social se define por uma mesma forma de inserção no processo produtivo, uma relativa igualdade de acesso á renda e ao poder e portanto a formação de consciência de si mesma. Estas condições estavam dadas nas velhas plantas industriais, com milhares de operários organizados em atividades semelhantes, com salários semelhantes entre si e enorme concentração espacial.

A globalização e a reestruturação produtiva acabaram com estas condições. Nas plantas fabris sobreviventes dos velhos cinturões industriais trabalham muito menos operários, com um sem numero de degraus e hierarquias entre eles e funções muito mais diversificadas, assim como patamares salariais distintos. A enorme maioria da força de trabalho foi deslocada para o setor de serviços, com formas distintas de inserção no processo produtivo, onde subsiste trabalho assalariado mas cresce o trabalho terceirizado, a “pejotização” e o empreendedorismo precarizado. Formar consciência de classe nestas condições é muito mais difícil.

A perda progressiva das identidades de classe foi substituída pela ascensão de outras identidades fragmentadas em busca de representação politica. Pela esquerda a luta anti-racista, a pauta LGBT, a luta feminista, a defesa de valores libertários. Pela direita as identidades étnicas, religiosas, culturais, a defesa de valores punitivistas.

Se no século 20 a luta politica se organizou no fundamental em torno de interesses de classe, neste início do século 21 são as identidades que prevalecem na disputa .Recolocar a centralidade da disputa politica em termos de conflito de interesses de classe é condição fundamental para a esquerda recuperar a relevância com capacidade de disputar poder. 

Isto não significa abandonar ou relativizar as lutas por direitos civis expressas nas pautas identitárias afetas á esquerda, mas reconhecer a sua insuficiência para lastrear a construção de uma nova hegemonia politica.

Por tudo o que expus nesse texto, não é tarefa fácil nem tenho a pretensão de mostrar o caminho da salvação. Entre a esquerda que segue com a certeza na frente e a historia na mão , eu fico com a sabedoria de Socrates expressa na frase “tudo o que sei é que nada sei”.

Nenhum comentário: