Marx, 200 anos: como reinventar a emancipação? Por Luisa Barreto
Publicado no Outras Palavras.
No início de maio, aconteceu em Berlim o Congresso Marx200: Política – Teoria –Socialismo, na Fundação Rosa Luxemburgo, em cooperação com o Teatro HAU Hebbel am Ufer. Foram quatro dias de extensa programação sobre a vida e obra de Karl Marx, em comemoração dos 200 anos de seu nascimento, em 5 de Maio de 1818. Foram dezenas de workshops, palestras e eventos paralelos como a exposição: Revoltem-se! Maio de 68/Poder e Impotência de uma Utopia (Empört euch! Mai 68/ Macht und Ohnmacht einer Utopie). Autores foram convidados para falar a partir das mais variadas perspectivas dentro da chamada crítica pós-marxista, temas atuais como o colonialismo, o feminismo e os movimentos sociais contemporâneos.
O evento, um painel a demonstrar que Marx revive principalmente na crítica pós-colonial e feminista, não se restringiu aos debatedores europeus. Estiveram lá pensadores árabes, latino-americanos, japoneses, africanos, indianos, chineses, que abordaram uma ampla diversidade de temas em composição com conceitos fundamentais da obra de Marx, como luta de classes hoje, relação entre Estado, sociedade e democracia; trabalho, antropologia. Outros temas presentes: Marxismo e feminismo, Psicanálise e Marxismo, Marx no Japão, Cyber-Marx, Marx na China, na África do Sul, Ecossocialismo e mostraram a força do pensamento marxista hoje.
Kavita Krishnan, secretária da Associação das Mulheres Progressistas da Índia (All India Progressive Women’s Association – AIPWA), membro do Partido Comunista da Índia – Marxist-Leninist (CPI-ML) e editora da revista Liberation falou sobre a revolta dos Dalits e a luta contra o fascismo, resistência e imaginação política, numa mesa sobre Linhas de Fuga da Perspectiva Socialista/Comunista e Utopia (Die Fluchtlinien sozialistisch/kommunistischer Perspektive und Utopie). Discussões sobre como a tradição marxista é transposta para outros contextos e quais os usos que se faz da interpretação sobre as relações entre Estado e sociedade na China, com Zhang Shuangli, da Universidade de Fudan e da Universidade de Shanghai, tiveram destaque na programação, assim como a palestra Marx Global, Classes e Política com Gayatri Spivak. Essas não foram as únicas mulheres; a presença feminina foi marcante em todas as mesas e debates.
Não por acaso a palestra inaugural foi proferida por Michael Hardt, filósofo político e teórico literário conhecido pelos livros que escreveu com Antônio Negri, especialmente, a trilogia Império (2001), Multidão: guerra e democracia na era do império (2005) e Bem-Estar Comum (2016). Intitulada Assembly (para nós assembleia ou reunião), o assunto pairou em todas as discussões posteriores sobre como pensar resistência, utopia e imaginação hoje, e como desempoar o vocabulário da esquerda marxista trazendo-o para as lutas contemporâneas.
Assembly (2017) também é título do mais recente livro de Hardt e Negri, ainda sem tradução para o português. O livro não deixa de ser contíguo aos outros e nasce da pergunta que permaneceu em suspenso para os autores desde os movimentos globais contra governos autoritários e o neoliberalismo, que eclodiram desde 2011, numa linha temporal que segue até hoje. A onda iniciada com a Primavera Árabe em 2010 e atingiu países como a Tunísia, Egito, Líbia e outros do Oriente Médio e da África; que reverberou no 15-M, na Espanha e no Ocuppy Wall Street, desde 2011; e nas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, para citar alguns, repercutiu nos movimentos estudantis mundo afora, na revolta dos Dalits na Índia, no Black Lives Matter, no Ni Una Menos.
A pergunta que Hardt colocou na inauguração do evento foi: “Por que esses movimentos, que expressaram tantas necessidades e desejos não foram capazes de realizar as mudanças que estavam buscando?”
Ela leva a retomar questões sobre liderança e estratégia, dois pontos críticos na obra dos autores e que vez ou outra retornam na crítica aos escritos deles. Hardt reforçou que, principalmente após a eleição de Donald Trump, a pergunta se tornou inevitável e emergente, já que os protestos não parecem mais suficientes.
Muito se argumenta hoje em dia, a partir do conceito de multidão tal como elaborado por Hardt e Negri, se a falta de projeto claro a ser sustentado pelas revoltas e manifestações não é uma característica da própria horizontalidade dos movimentos atuais, que lutam contra temas diversos, porém imbrincados, sendo extremamente árdua a tarefa de criar um projeto que se efetive e concretize numa reorganização estratégica da esquerda global.
Onde estão os novos Rudi Dutschke, Martin Luther King, Antonio Gramsci, Nelson Mandela, Che Guevara e a própria Rosa Luxemburgo? – perguntou ele. Afinal, precisamos ou não de líderes carismáticos como os de outrora? O sentido de urgência desta pergunta não tem a ver com não reconhecer a potência e as ações dos movimentos que irrompem mundo afora, mas com recolocar a questão sobre o que significa assumir uma posição de liderança e quais seriam os requisitos e perigos de incumbir-se deste lugar, uma vez que ser um líder carismático é assumir uma posição de risco, disse o autor.
Eis aqui o paradoxo que emerge da própria questão e também dos livros escritos pelos autores. A tendência a recusa das formas centralizadas de liderança da esquerda tradicional, associadas ao elogio a multidão resultaram numa rejeição a autoridade, à liderança e, em consequência, na recusa a organização. Nos movimentos sociais dos últimos 50 anos, feministas, estudantis, dos trabalhadores, a posição de liderança foi duramente atacada e criticada, dentro dos próprios grupos, especificamente no que diz respeito à centralização da figura do líder, fato que deu início a uma série de práticas de democratização dentro dos próprios grupos, como garantir que todos falem, organizar assembleias e coordenar narrativas nas redes sociais e meios de comunicação.
Hardt citou o movimento Black Lives Matter, que vem constantemente rejeitando ou ao menos problematizando o modelo do líder carismático masculino, tão celebrado na história do movimento negro nos Estados Unidos, na forma de um acionamento do sistema imunológico do próprio movimento, como mecanismo de proteção e defesa das figuras proeminentes que coreografam ações e discursos através das mídias sociais. E não somente, mas também como estratégia de contenção do avanço de alguma figura, em particular, que se torne a representação do grupo como um todo, suprimindo a comunicação democrática e horizontal.
A relevância deste ponto na fase atual da obra de Hardt e Negri demonstra a necessidade de desatar o nó, até então amarrado, sobre a confusão entre criticar a posição de liderança e disto ter sido traduzido muitas vezes como recusa da organização, das instituições ou como falta de projeto político. Afinal, o lugar da liderança pressupõe uma certa expertise, capacidade de monitoramento sobre os movimentos da polícia e da própria multidão, de comunicação, de ouvir e aplicar ideias discutidas em comum, estratégias de defesa e de proteção, ou seja, ainda que esta capacidade que se aplicava geralmente a figura do líder seja generalizada pelo próprio intelecto geral, a multidão precisa se tornar multidão estratégica, disse Hardt.
Estratégia, nesse sentido, como uma forma de entender a própria liderança e como habilidade de tomar decisões, ter uma visão ampliada das questões em disputa, buscar uma continuidade para projetos de longa duração. Diferente, portanto, de tática, cujo campo de ação tende a ser temporal e espacialmente limitado. A questão da generalização da habilidade é fundamental, pois ainda que se tenha como pressuposto a democratização dos movimentos e a não concentração da tomada de decisão ou da definição da estratégia na figura do líder, é a generalização da habilidade de criar e de dar continuidade às estratégias criadas coletivamente que estão em jogo. Ou seja, o movimento centrífugo da multidão, que teria como partitura e ponto de partida o próprio intelecto geral, seria ou deveria ser radicalizado a partir da capacidade de criar estratégia.
Logo, a multidão estratégica seria a fundação da assembleia, estrutura e base das ações de resistência hoje, tendo como ponto de partida a inversão das funções comumente associadas a estratégia e a tática. A estratégia, nas palavras de Hardt, deveria ser função da multidão e dos movimentos e a tática deveria limitar-se à liderança. Multidão-estratégica e liderança-tática seriam os polos constitutivos de movimentos como o chamado municipalismo espanhol e o partido político Podemos, fundado na Espanha em 2014, o movimento Ni Una Menos na Argentina e o Diem25, Democracia na Europa 2025, movimento político pan-europeu de esquerda fundado por Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia.
No Brasil crescem não só os movimentos organizados como a Frente Povo Sem Medo (FPSM) e o MTST, mas lideranças como Marielle Franco, Sônia Guajajara, Davi Kopenawa Yanomami, Raoni Metuktire, Guilherme Boulos, Manuela D´Ávila, Jean Wyllys e tantos outros mais ou menos populares, mais ou menos escondidos. Seriam eles líderes estratégicos e carismáticos?
Após um breve apanhado das questões que motivara os primeiros livros, como os conceitos de produção social ou biopolítica, multidão, comum, Hardt tocou no conceito de empreendedorismo da multidão, “o mais irritante do último livro”, segundo ele. O termo, que nos transformou em empreendedores de si endividados, saturado pelo discurso neoliberal e pilar da crítica ao capital humano, foi reformulado pelos autores com novo sentido. Hardt afirmou a necessidade de restaurar o vocabulário da esquerda capturado pelo discurso econômico, como democracia e amor, fazer novo uso de conceitos que vem sendo apagados, negativizados ou substituídos. Empreendedorismo, longe de ser um vocabulário da esquerda, traz em si a ideia de empreender, criar. Segundo o autor, não há nada em comum com preencher um lugar deixado vazio pelo Estado; empreender, nesse sentido, não tem a ver com iniciativa privada, inovação, nem com uma forma de ascensão do precariado.
Como organizarmo-nos contra o avanço conservador e como empreender novos mundos? São as perguntas antigas com as quais estamos lidando em momentos como o atual. A palestra, muito bem amarrada e dentro do tempo, acabou com a dúvida também antiga: protesto e resistência são suficientes do ponto de vista estratégico e da construção de novos modos de vida?
As perguntas feitas ao autor ao final levantaram questões importantes sobre como estamos lidando com a ascensão dos líderes carismáticos de direita, e com o crescimento do conservadorismo em tempos de revolta da multidão. O papel do intelectual público, o qual Hardt e Negri exercem, foi questionado e colocado como forma de ausência de responsabilidade e de criação de estratégia. Ao final, com todos já cansados e sem respostas, pairou uma atmosfera de dúvida onde havia, de fato, mais perguntas que respostas. Michael esboçou uma justificativa, dizendo que seu lugar é o de trabalhar com os movimentos e aprender com eles, working with e learning from. Serão os próximos conceitos a serem tratados pelos autores os de risco e de responsabilidade?
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Luisa Barreto é Jornalista, mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
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