E os “mercados” já querem controlar o futuro presidente, por Paulo Kliass
Publicado no Outras Palavras.
A sensação de que estamos face a uma verdadeira ausência de governo tem aumentado ao longo dos últimos meses. Até mesmo as forças políticas que conspiraram abertamente pelo golpeachment reconhecem que o núcleo duro da equipe de Michel Temer não comanda mais nada. Aproximamo-nos a cada dia que passa de um perigoso vale-tudo e a senha preferida dos antigos aliados agora vai na base do cada um por si, salve-se quem puder. Aliás, foi exatamente esse o mote adotado pelo fisiologismo golpista, quando rasgaram a Constituição e jogaram no lixo o respeito aos padrões mínimos da ordem jurídica e democrática. Primeiro a gente tira a Dilma e depois…
“Cría cuervos y te sacarán los ojos” já dizia o ditado espanhol. Agora quase ninguém mais daquela turma ainda tem a coragem política de defender o legado deixado por Temer. Os candidatos a candidato se esquivam e se escondem do ocupante do Palácio do Jaburu. O Brasil parece que fica meio anestesiado durante os jogos da Copa na Rússia e o calendário político por aqui só opera om base nas perspectivas das eleições gerais de outubro. Pesquisas de intenção de voto, costura de alianças, teste de candidatos, dúvidas sobre a presença de Lula na urna, prazo para registro das candidaturas. Tudo gira em torno do pleito, bem como as dúvidas e incertezas a seu respeito. Enquanto isso, quase ninguém sabe os nomes dos atuais ministros da Fazenda ou do Planejamento, nem acompanha as maldades perpetradas pela nem tão nova assim equipe econômica. Reuniões do Copom, disparada da taxa de câmbio e votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) são fatos que passam despercebidos da grande maioria.
No entanto, o quadro da economia é bastante grave e as dificuldades apresentadas pela situação fiscal não podem ser menosprezadas. A previsão inicial para o resultado das contas públicas para o exercício atual trabalha com a hipótese de um déficit primário de R$ 159 bilhões. Porém, como a intensidade da recessão provocada pelo austericídio não foi muito atenuada, é bastante razoável imaginar que o baixo crescimento do PIB reduza ainda mais a arrecadação tributária esperada. Assim o buraco pode ser ainda maior — ou o governo vai contar com algum mecanismo de contabilidade criativa para se aproximar dos números inicialmente apresentados.
Austericídio e déficit fiscal
O quadro precisa ser encarado com responsabilidade. A LDO para 2019 em apreciação no Congresso Nacional ainda mantém a previsão de um déficit para o ano que vem: R$ 139 bi nas contas primárias do setor governo. No entanto, é necessário cautela para não cairmos no conto da carochinha dos arautos do financismo. Onze em cada dez assessores dos candidatos da direita bradam aos quatro contas pela redução draconiana de gastos. Os grandes meios de comunicação fazem eco em suas páginas e telas, criticando o que chamam de “populismo e demagogia” dos que propõem a revogação das principais adotadas por Temer, Meirelles & Cia Ltda. Refiro-me aqui à Emenda Constitucional 95 (que congela os gastos públicos por longos 20 anos), às mudanças “liberalicidas” na CLT e as privatizações à mancheia na Petrobrás e demais áreas de infraestrutura.
Os próprios países ditos desenvolvidos adotaram políticas de retomada de crescimento das suas respectivas economias para sair da situação encalacrada posterior à crise financeira de 2008/9. Às favas com os manuais de receita da ortodoxia monetarista, quando o essencial é recuperar emprego, PIB e evitar a quebradeira generalizada de suas empresas. Assim fizeram Estados Unidos e os países mais ricos da União Europeia. Isso significa que não existe alternativa para o Brasil superar o atual momento de estagnação e indefinição sem a retomada do protagonismo do Estado na condução do processo de saída da crise. Manter a atual obstinação com as políticas de cortes orçamentários burros só fará agravar ainda mais o quadro social e econômico, retardando as condições para retomar o crescimento tão urgente quanto necessário.
Ao contrário do que pretendem os economistas que sempre apoiaram o neoliberalismo em nossas terras, o Brasil não apresenta um quadro crônico e estrutural de déficit em suas contas públicas. Aliás, muito pelo contrário. Basta uma rápida consulta às informações oficiais da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). A série iniciada em 1997 nos revela que ao longo dessas duas décadas os resultados foram positivos. Entre 1997 e 2002, por exemplo, a média anual de superávit primário foi de 1,2% do PIB. Em seguida, entre 2003 e 2013, a média até subiu para 2% no resultado primário positivo. Ou seja, durante 17 anos o país cumpriu religiosamente seu “dever de casa” perante o poder do financismo e gerou um resultado nas contas públicas não-financeiras.
Entre superávit e déficit: a recessão
O quadro atual de dificuldades tem sua origem, entre outras razões, na aceitação passiva do cardápio estagnacionista — a ideia de que o governo deveria cortar suas despesas em saúde, educação, previdência, pessoal, investimentos, entre outras. Desnecessário dizer que os gastos com juros e rolagem da dívida pública ficaram de fora dessa limitação. Assim, a partir de 2014 a economia brasileira reduziu drasticamente sua taxa de crescimento, provocando também uma diminuição nas receitas do governo. Com isso, as necessidades na área fiscal se apresentam e o quadro anterior se inverte. Entre 2014 e 2017, a média anual foi de déficit primário de 1,7% do PIB. Como se vê, déficit fiscal rima com recessão do PIB.
Ora, a solução desse tipo de problema não pode se resumir à analogia com a economia familiar ou de uma empresa quando se encontra face a receitas insuficientes. O Estado brasileiro, assim como os demais países do mundo contemporâneo, tem a capacidade de emitir sua própria moeda, pode lançar títulos da dívida pública e tem a legitimidade para arrecadar tributos. Não se pode limitar a análise à conhecida cantilena de cortar e cortar e cortar. Na equação de (receitas menos despesas) cabem dois importantes componentes quase nunca mencionados pelos queixosos de plantão. Trata-se da sonegação e da desoneração tributárias.
A prática da sonegação é antiga e conta com a cumplicidade de setores no interior do Executivo, Legislativo e Judiciário para evitar que seja combatida e criminalizada. As projeções elaboradas por entidades dos servidores da área alimentam o chamado “sonegômetro” e falam em um total superior a R$ 570 bi para o presente ano. Os valores assustam, mas raramente identificam-se medidas para evitar esse tipo de crime, modernamente tratado pelo sofisticado apelido de “planejamento tributário”. Além disso, existe um montante oficial de dívida reconhecida e não paga que chega a números impressionantes.
Sonegação trilionária
Informações oficiais apresentadas pela própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) relatam um valor da chamada Dívida Ativa da União superior a R$ 2 trilhões. Achou que leu errado? Não! É isso mesmo: os débitos não pagos aos cofres do Tesouro Nacional até novembro de 2017 eram de R$ 1,5 tri para as dívidas classificadas como não-previdenciárias e R$ 500 bi para as dívidas previdenciárias e do FGTS. Desse total, o esforço realizado resultou em uma recuperação de R$ 26 bi em 2017 – pouco mais de 1% do total.
Outra fonte de perda de receitas da administração pública refere-se à prática de desoneração e isenção de tributos. Não pretendo com isso demonizar esse importante instrumento de política econômica, uma vez que a grande maioria de países do mundo adota esse tipo de medida para estimular setores, proteger empregos, evitar concorrência desleal e incentivar áreas estratégicas. No entanto, no balanço geral de receitas e despesas esse tipo de informação deve ser transparente e cristalina, sob pena de repetirmos as bobagens dos jornalões e “especialistas” de plantão. Trata-se das mentiras que ouvimos a todo instante que tentam responsabilizar os aposentados que recebem o benefício previdenciário de um salário mínimo como os responsáveis pela crise fiscal.
Desoneração sem controle
As desonerações são perdas de receitas. Na própria terminologia do financês, elas são tratadas pelo eufemismo de “gastos tributários”. A reconhecida e insuspeita “Instituição Fiscal Independente”, órgão criado há pouco mais de um ano no interior do Senado Federal, aponta números a esse respeito. A previsão de “perdas de receitas com gastos tributários” para 2017 é ligeiramente superior a R$ 270 bi, algo próximo a 4,1% do PIB. Uma retrospectiva apontada no estudo revela uma média anual de igual valor para o período dos últimos sete anos, mas com uma tendência clara de crescimento: 3,5% em 2011 e 4,5% em 2015.
Pelo lado das despesas, não pode ser desconsiderado tratamento especial e diferenciado concedido pelo modelo hegemônico à rubrica financeira, em especial aos gastos com juros e serviços da dívida. Os dados do Banco Central apontam para um total de R$ 384 bi ao longo dos últimos 12 meses. São também impressionantes os valores acumulados ao longo dos últimos 20 anos: R$ 4,8 tri foram retirados do orçamento e direcionados para o sistema financeiro a esse título.
Frente a tal quadro, é necessário adotar muita cautela na interpretação dos números e na avaliação da causalidade dos fatores. A conjuntura fiscal é grave, mas o Estado brasileiro conta com um conjunto amplo de instrumentos diversificados para enfrentar a crise. Se houver vontade política, o próximo governo poderá lançar mão de medidas que permitam superar o momento difícil sem penalizar mais uma vez os mais pobres, como sempre fez até hoje. Já passou da hora de chamar os setores do topo da pirâmide e as grandes empresas a darem sua modesta, porém inédita, parcela de colaboração.
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Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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