25 anos da Ação da Cidadania, por Daniel Souza

Publicado em seu perfil no Facebook e na edição desta quarta-feira (16), no Jornal do Brasil.


500 mil pessoas morreram de fome em apenas dois anos. Três décadas depois, mais 100 mil. Milhares de homens, mulheres e crianças em campos de concentração.

Errou quem pensou no Holocausto. Estas 600 mil mortes ocorreram no nordeste brasileiro, entre 1877 e 1917. Os campos de concentração foram construídos no Ceará, em 1932, para confinar 16 mil flagelados que tentavam chegar em Fortaleza, fugindo da seca.

Exemplos como estes mostram a força e a onipresença da fome na história brasileira. Implacável e responsável pelo genocídio de centenas de milhares de pessoas, sua causa nunca era revelada ou questionada. E quando era, o culpado não podia ser punido: a natureza ou a vontade divina. Foi assim até a metade do século passado, quando um nordestino finalmente revelou o verdadeiro culpado: o próprio homem. Para Josué de Castro, “a fome não é um fenômeno natural, mas um fenômeno social, produto de estruturas econômicas defeituosas”.

Autor de “A Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”, Josué era o Presidente do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação – FAO, e respeitado em todo mundo como um dos intelectuais mais brilhantes sobre o tema. Foi, por isso mesmo, o primeiro a ser cassado no golpe de 1964. Tragicamente, o único homem que tinha o conhecimento e as condições para erradicar a fome no país (ainda no século passado) faleceu no exílio, amargurado pela saudade e pela consciência de que a inanição ainda mataria muitos brasileiros.

A ditadura também enterrou a reforma agrária, condição fundamental para alimentar a população em qualquer país do mundo. Os generais acharam que o melhor e mais moderno modelo a seguir era o das Capitanias Hereditárias e, em poucas décadas, um pais de dimensões continentais assistiu a migração do campo para a cidade de 60% da sua população, o maior êxodo da nossa história. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE, a população dos centros urbanos passou de 30 milhões para 80 milhões entre 1960 e 1980. Foi o início da expansão desmedida das periferias, crescimento das favelas, aumento do desemprego, da pobreza e da violência, enfim, um dos resultados do Milagre Brasileiro.

A fome seguiu trabalhando em silêncio, mas com extrema eficiência. Produziu óbitos em recém nascidos e gerações inteiras de famílias com agudo déficit nutricional. Quando o IPEA - Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas finalmente acordou o Brasil, em 1993, era tarde. 32 milhões de pessoas já estavam com fome.

Mas desta vez a sociedade sabia qual era a causa e se mobilizou. Nascia assim a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. O movimento nacional liderado por Betinho, Dom Mauro e tantos outros convocou a sociedade a fazer a sua parte, e cobrou do governo ações concretas. O símbolo dessa mobilização, a campanha Natal Sem Fome, mostrava que se a população podia arrecadar toneladas de alimentos, o poder público poderia fazer muito mais.

Programas de distribuição de renda como o Fome Zero e o Bolsa Família foram consequência direta da enorme onda que varreu o país. O slogan “quem tem fome tem pressa” traduzia a situação de um contingente de pessoas igual à população do Peru. Era necessário e urgente criar políticas públicas que levassem em conta a totalidade da população brasileira. Isto só ocorreu quando outro nordestino chegou à presidência do Brasil, e a luta contra a miséria ganhou o impulso necessário para tirar o país do Mapa da Fome da ONU, em 2014. Esse feito, que surpreendeu o mundo, trouxe centenas de delegações estrangeiras ao Brasil querendo saber como reproduzir o programa em seus países. O Brasil já tinha sido referencia no combate ao HIV/AIDS, e agora era de novo no combate à fome.

Não faltaram críticas ao Bolsa Família, mesmo depois da redução de 80% no número de pessoas abaixo da linha da pobreza. Quem criticou, ou ainda critica, provavelmente nunca esteve diante de uma mulher grávida cujo bebê ainda não nasceu mas já sente fome, porque o corpo da mãe não tem condições de nutrir o feto. Nem esteve na casa de uma família onde as crianças choram de fome enquanto os pais choram por seus filhos não terem o que comer. Se estes brasileiros não merecem uma pequena ajuda do Estado, quem merece?

A Ação da Cidadania, por sua vez, se encontrava numa encruzilhada. A razão para a qual ela foi criada – o combate a fome – estava finalmente sendo feito por quem deveria resolver o problema – o poder público... Qual seria a função da entidade agora? Um seminário nacional com coordenadores dos 18 Estados onde a Ação atua decidiu que o foco para os próximos 25 anos seria a formação e a capacitação de jovens através da inovação. E com muita alegria, depois do 15o Natal Sem Fome, o Comitê Rio parou de arrecadar comida, na certeza de que o emergencial finalmente daria lugar ao estrutural.

Mas a fome não abre mão do seu reinado assim tão facilmente...

Uma crise econômica aguda faz um estrago na classe média e arranha a classe alta. Mas nas famílias que se encontram logo acima da linha da pobreza (ou ainda abaixo dela) o efeito é devastador. Bastaram dois anos para o Brasil retroceder em direção ao Mapa da Fome da ONU, do qual saiu há apenas 4 anos...

E no final de 2017 os dados oficiais revelados pelo IBGE apenas confirmaram o que os comitês da Ação da Cidadania pelo país já alertavam e os brasileiros já sentiam: a fome estava de volta. E com ela, o Natal Sem Fome.

Apesar dessa crise, a adesão maciça da sociedade brasileira à campanha arrecadou 900 toneladas de alimentos não perecíveis, superando a meta inicial de 500 toneladas. Depois de 10 anos sem realizar a campanha, quase meio milhão de pessoas tiveram um Natal Sem Fome em 2017.

É difícil descrever a frustração e a indignação que a reedição da campanha gerou na entidade. Recomeçar a mobilização nacional do zero representa o desperdício de 15 anos de trabalho, alimentos e esperança.

O que nos cabe em 2018, quando completamos 25 anos, é realizar o maior Natal Sem Fome da história da Ação da Cidadania, sempre na esperança de que será o último.

Somos um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, mas com 10 milhões de pessoas na extrema pobreza. Eram 5 milhões em 2015. Retrocedemos uma década em apenas 3 anos. Como no passado, o problema não é a falta de comida, Deus ou a natureza. O problema somos nós.
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Daniel Souza, Presidente do Conselho da Ação da Cidadania.

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