Os militares e a herança de Bolsonaro, por Sergio Batalha
A recente polêmica envolvendo as críticas de Gilmar Mendes aos militares pela atuação à frente do Ministério da Saúde deve servir para a reflexão sobre o próprio papel das Forças Armadas no Brasil.
O nosso país tem mais de trezentos mil militares distribuídos entre o exército, marinha e aeronáutica. Quase três mil deles, a maioria oficiais, estão ocupando cargos no governo Bolsonaro.
O fato é que Bolsonaro buscou uma desestabilização do país que lhe permitisse dar um golpe militar e instituir uma ditadura no país. Neste sentido, estimulou o confronto com o Judiciário e o Congresso, além dos ataques à imprensa e movimentos sociais.
O pretendido golpe foi barrado pela cúpula das Forças Armadas, que não confia em Bolsonaro e não aceitou bancar uma nova ditadura militar no país.
No entanto, os militares aceitaram ser usados como fator de intimidação da sociedade, deixando de repudiar de maneira pública e resoluta as frequentes ameaças de golpe militar feitas pelo presidente.
Em troca, ganharam uma generosa reforma da previdência, um novo plano de carreira e milhares de cargos no governo. Aceitaram, inclusive, assumir o próprio Ministério da Saúde para executar a vergonhosa missão de minimizar e esconder as mortes provocadas pela pandemia.
É notório que a esmagadora maioria dos militares brasileiros é de direita, em função de uma lamentável doutrinação antidemocrática praticada em todas as academias militares brasileiras. Logo, não farei nenhum apelo aos “militares progressistas”, que devem ser tão numerosos quanto os ministros competentes do atual governo.
No entanto, a maioria dos militares hoje tem uma mentalidade profissional, são servidores públicos mais preocupados com sua própria carreira do que com devaneios ideológicos propagados por Bolsonaro.
Já devem ter percebido a esta altura do campeonato que Bolsonaro está longe de se identificar com o modelo de militar competente no qual se espelham. É apenas um oficial subalterno com uma folha de serviços ruim, desligado do exército há mais de trinta anos, hoje muito mais ligado a milicianos no Rio de Janeiro do que a oficiais da ativa nas Forças Armadas.
Já se torna clara também sua vinculação a práticas de corrupção e banditismo, que frustram aqueles que se iludiram com seu discurso antissistema. Logo, é o momento das Forças Armadas como instituição abandonarem o barco do governo Bolsonaro.
Devem deslocar para a reserva todos os oficiais que insistirem em manter cargos no governo e deixar claro publicamente seu compromisso com as instituições acima da figura do presidente. É importante a desautorização pública e firme de qualquer discurso golpista, desmoralizando a chantagem feita por Bolsonaro a cada derrota sofrida por seu governo.
A insistência em se atrelar, ainda que de forma esquiva, a um governo impopular e irresponsável fará com que os militares herdem também toda a carga dos seus malfeitos. Os cadáveres da pandemia, os miseráveis criados pela crise econômica e mantidos pela inépcia do governo irão todos para a conta dos militares.
O resultado certamente será a desvalorização da carreira militar e a redução do papel das Forças Armadas no Brasil, em uma escala ainda maior do que a ocorrida após o fim da ditadura militar.
No fim das contas, talvez Gilmar Mendes tenha feito um favor aos militares, chamando sua atenção para um fato inegável: Há um general sem formação médica no comando do Ministério da Saúde durante uma pandemia que matou até agora mais de 75 mil brasileiros. Ninguém vai esquecer disto no futuro e a palavra genocídio aparecerá sim nos livros de história.
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Sérgio Batalha é advogado, professor universitário, especialista em relações de trabalho, além de conselheiro e presidente da Comissão da Justiça do Trabalho da OAB-RJ.
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