A “crise fiscal” e a queixa das hienas, por Paulo Kliass

Publicado no Outras Palavras.


O quadro de dificuldades proporcionadas pela crise fiscal tem oferecido um vasto cardápio de interpretações a respeito das alternativas a serem adotadas para a superação do quadro atual. A cada dia que passa parece ampliar-se o entendimento mais adequado a respeito das principais causas que levaram ao aprofundamento da situação de desequilíbrio nas contas públicas.

Ao contrário do que vinha sendo propalado aos quatro ventos pelos porta-vozes dos interesses do financismo, o déficit orçamentário dos anos recentes não pode ser explicado por imagens tão apelativas quanto irreais, a exemplo de “explosão descontrolada de gastos” ou “populismo bolivariano”.

Na verdade, as razões da incapacidade do governo Temer em controlar o déficit primário crescente desde 2015 encontram-se na própria estratégia adotada pelo comando econômico em manusear ferramentas adequadas na seara da política econômica. É importante lembrar que a política do austericídio havia sido iniciada ainda por Dilma Roussef no início de seu segundo mandato, quando nomeou Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda.

Com a posterior aprovação do golpeachment pelo Congresso Nacional, a dupla Meirelles & Goldfajn levou ao extremo essa opção de promover algum ajuste nas contas governamentais. O caminho revelou-se um fracasso completo, uma vez que cortar os gastos do Orçamento e manter a taxa oficial de juros nas alturas só poderia dar no que deu. O quadro é bastante conhecido de todos: recessão, desemprego, falências e agravamento da crise social.

Austericídio e déficit fiscal

Com as perspectivas eleitorais que se aproximam, a sociedade começa a discutir de forma mais ampla as raízes da crise atual e as alternativas que se colocam para seu enfrentamento. Uma das lições mais importantes que se pode tirar a esse respeito refere-se à compreensão de que a crise só pode ser ultrapassada com crescimento econômico. Sem a retomada do PIB, não há solução que seja do interesse da maioria da nossa população. Isso porque a persistência na trilha recessiva demonstrou aquilo que os economistas não ortodoxos já vínhamos alertando há muito tempo. A capacidade arrecadatória do Estado é peça essencial para enfrentar o desequilíbrio fiscal.

O atual descompasso entre receitas e despesas não surgiu repentinamente por algum desejo malévolo do governo em gastar mais. O fato é que a opção por implementar a recessão a qualquer custo trouxe embutida em si mesma o tiro no pé materializado na queda das receitas tributárias. Da mesma forma, amplia-se a compreensão de que a saída do fundo do poço — onde fomos jogados pela aventura irresponsável empreendida e estimulada pelos agentes do sistema financeiro — só será possível pelo retorno da capacidade de arrecadação de impostos. A insistência burra e cega com a obsessão do “cortar, cortar e cortar” já deu as mostras de seu desserviço. Basta!

E nesse ponto volta à tona o famoso chororô da carga tributária elevada. Os mesmos espaços dedicados até anteontem nos grandes meios de comunicação ao surrado mote do “primeiro a gente tira a Dilma e depois…” agora voltam-se a bradar forte contra o consenso que se começa ser construído a respeito da necessidade de buscar novos recursos nos cofres públicos para reequilibrar a conta entre receitas e despesas.

Chororô de quem é isento e sonega

Afinal, a crise terminou por trazer um pouco mais de luz, oxigênio e inteligência ao debate a respeito das alternativas de política econômica. Nossa estrutura tributária é impressionantemente regressiva. Bingo! A partir de agora generaliza-se a percepção do óbvio: qualquer reforma tributária para ser efetiva deve ter seu início pela mudança de filosofia no sistema de impostos. Isso implica em reduzir a incidência dos mesmos sobre o consumo e a produção, de forma a focar mais sobre a renda e o patrimônio. Isso equivale a propor uma estrutura de natureza progressiva, de forma a que passem a recolher mais tributos aqueles setores e classes sociais que mais possuem – exatamente o oposto do que ocorreu desde sempre em nosso País.

No entanto, a simples tomada de consciência da presença de tal distorção no modelo de arrecadação já deixa de cabelo em pé aqueles grupos que nunca deram um mínimo de sua contribuição para o volume de impostos arrecadados por nossas terras.

Afinal, esse é Brasil onde “lucros e dividendos” das empresas passaram a ficar isentos graças a uma providencial bondade oferecida às classes dominantes pelo então presidente Fernando Henrique em 1995. Afinal, esse é o Brasil onde o dispositivo constitucional de um Imposto sobre Grandes Fortunas aguarda sua regulamentação desde 1988. Afinal, esse é o Brasil onde o Imposto Territorial Rural arrecada menos de 0,1% do total da massa tributária arrecadada – o paraíso do agronegócio e um dos países de maior extensão agrícola do planeta.

Afinal, esse é o Brasil onde jatos, helicópteros e iates são isentos de imposto sobre veículos automotores, enquanto a maioria esmagadora da população paga o tributo sobre seus carros e motocicletas. Afinal, esse é o Brasil onde a dívida ativa da União supera a casa dos R$ 2 trilhões e onde os valores de sonegação anual de impostos superam os R$ 500 bilhões.

Carga tributária subiu com FHC

Se é verdade que o nosso sistema de cobrança de impostos é complexo e precisa mesmo ser simplificado, isso não significa que nossa carga tributária seja muito elevada. O conhecido “mimimi” das entidades representativas do empresariado em sua eterna cruzada contra os impostos não resiste à primeira análise ou comparação internacional. A relação existente entre total de impostos arrecadados e o PIB encontra-se atualmente na faixa de 32%. E esse valor reflete exatamente a média observada para a carga tributária ao longo do período entre 1999 e 2017, segundo estatísticas da própria Receita Federal do Brasil. O que não se comenta muito é que o verdadeiro salto ocorreu a partir de 1995, quando o coeficiente estava em 27%. Portanto, foi no auge do governo tucano que a suposta explosão do peso dos tributos teria ocorrido.

Em termos de comparação com outros países, a participação de impostos em nosso produto interno tampouco deve servir como fonte de preocupação ou espanto. Informações da OCDE colocam o Brasil abaixo da média da carga tributária — estamos com o coeficiente menor do que 22 dos 32 países apresentados nos estudos. Se o critério for a carga tributária relativa ao quesito “renda, lucro e ganho de capital”, ocupamos o vergonhoso último lugar, com 6% do PIB. Nosso indicador é menos do que a metade dos países da OCDE, o que comprova as facilidades e benesses com que são tratados os proprietários em nosso país. Essa é a nossa verdadeira jabuticaba tributária.

Com isso, percebe-se que a crise fiscal pode servir como oportunidade para que sejam promovidas mudanças em nossa injusta estrutura de impostos. Assim, a carência de recursos nos cofres do Tesouro Nacional ofereceria o caminho para que os setores do topo da pirâmide sejam chamados, pela primeira fez em nossa História, a contribuir de forma mais equitativa para que o Estado brasileiro consiga recuperar seu protagonismo no cenário econômico.
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Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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