Populismo e afetos, por Débora Nunes

Publicado no Outras Palavras.


Na acepção clássica da política, o líder populista é aquele que procura estabelecer um vínculo emocional com o povo e mantém atitudes demagógicas ao distribuir “migalhas” para manter seu domínio político. O populismo sempre foi criticado, à direita e à esquerda. A direita, claro, por seu vínculo histórico com as elites, opõe-se aos líderes de esquerda e às suas políticas sociais. Classificam de “populista” os líderes que têm o dom de atrair a atenção e o carinho dos povos com políticas que lhes favorecem. De modo geral, essas políticas aumentam o gasto público – horror dos direitistas, que só o aceitam se esse contribui para o enriquecimento ainda maior dos já ricos.

A esquerda, por sua vez, sempre combateu líderes de direita que desenvolveram uma relação visceral com o povo prometendo soluções mágicas para problemas complexos. Geralmente, questões vinculadas à segurança do cotidiano (desemprego, violência urbana, supostas ameaças externas ao país, etc.). Interessa aos líderes de direita ditos populistas manter um estado permanente de ameaça no qual eles se apresentam como “salvadores”. Para a esquerda, a ideia de emancipação popular, que lhe é cara, contradiz frontalmente a proposta de algum “salvador”: É o povo unido que nunca será vencido. Mesmo líderes “esquerdistas” que se destacam na atuação política como “salvadores” são alvo de desconfiança de parte da esquerda, pelos mesmos motivos.

De modo geral, o populismo foi amplamente combatido por desenvolver-se fora das instituições, sejam elas partidos (os líderes tornam-se maiores que esses), ou as instituições democráticas (quando o líder toma o poder pela força). Em tempos de desmoralização generalizada dos partidos no mundo inteiro, com as raras exceções de praxe (como o Podemos da Espanha, a coalizão de esquerda que governa hoje Portugal, o AAP Party, na Índia, entre outros), resta defender as instituições democráticas. Os partidos precisam se reinventar para que sejam tão respeitados quanto alguns de seus líderes. Essa reinvenção, focada na coerência de suas práticas com os conteúdos de seus programas, fará muito bem à democracia.

O outro modo de ver o “populismo” que se pretende destacar nesse texto é o caráter desmoralizante que essa expressão confere à relação emocional de um povo com um/a líder, como se essa fosse por si só recriminável. Na lógica cartesiana e patriarcal o afeto é algo menor. Para o cartesianismo, que domina a ciência e o pensamento “erudito”, apenas o que é objetivo em termos de ser oriundo de um cálculo racional tem valor. As razões do coração só são válidas para pessoas ignorantes, que não sabem argumentar racionalmente. Para o patriarcalismo, o afeto é algo “afeminado” e o jogo político é sempre bruto, uma disputa pelo poder onde a desconfiança e as disputas devem imperar. As lutas intestinas no seio da esquerda estão relacionadas a essa visão de mundo patriarcal e da ânsia de dominação que lhe é particular, ignorando a necessidade óbvia de parceria.

Nos dois casos, tanto para o cartesianismo intelectual quando para o patriarcalismo relacional, o afeto na política é desaconselhado. Felizmente homens e mulheres de coletivos cidadãos de novo tipo estão valorizando cada vez mais os laços de amizade e confiança na construção da política e superando os preconceitos cartesianos e patriarcais. A arte de associar-se é tão importante quanto o combate ao inimigo político; praticar o que se prega é tão importante quanto argumentar magistralmente a necessidade de novas práticas. A palavra e o cérebro são mais competentes e sábios se associados às práticas e ao coração.

Voltando à política de aqui e agora e lembrando da comoção de milhões de brasileiros e brasileiras com as injustiças cometidas contra Dilma Rousseff em seu impeachment e com Lula da Silva em sua apressada prisão, vale considerar as razões do coração na política e mesmo trabalhar mais “objetivamente” em torno delas. A inteligência do coração pode discernir muito melhor que os dados conjunturais valorizados em um momento político: o constante martelar midiático contra Lula e Dilma mostram isso, pois não convenceram tanto como esperavam seus autores. Um/a líder amado por promover a dignidade e não por incitar o medo e o desejo de proteção é um perigo para quem? Quando o afeto vem de uma experiência prazerosa de se sentir entendido e respeitado, de perceber a coerência de um indivíduo nas suas palavras e atos de forma majoritária ao longo de sua história, isso enobrece a política, ou não?.

Discernir entre as emoções positivas (a admiração, a compaixão, a cumplicidade, por exemplo) e as emoções negativas (o medo, o ódio, a vingança) faz toda a diferença. A inteligência afetiva que vem do coração percebe para além do racional imediato e do visível e isso é comprovado por inúmeras pesquisas. Ela se revela cada vez mais sábia aos poucos e o Brasil irá valorizar Dilma e Lula ainda mais que hoje, quando o tempo tomar sua estatura e os ódios, vinganças e medos se abrandarem. A esquerda, se quer se renovar, precisa atentar para os valores do patriarcado que a cegam. Precisa observar os limites da objetividade cartesiana. A valorização dos temas “femininos” do cuidado, do afeto, do diálogo e da parceria poderão ser importantes impulsionadores da ação política da esquerda. No Brasil desse momento, ela poderá ser definidora do futuro, se a esquerda começar por aplicar esses princípios femininos a si mesma.
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Débora Nunes é arquiteta,doutora em Urbanismo, com pós doutorado em Extensão Universitária pela Universidade Lumière Lyon II (2008) e em História das Cidades e Cidades do Futuro pela Bangalore University, India (2015). É coordenadora da Escola de Sustentabilidade Integral e professora titular da Universidade do Estado da Bahia, no Curso de Urbanismo. Autora dos livros Os Novos Coletivos Cidadãos (2014), com Ivan Maltcheff; Incubação de Empreendimentos de Economia Solidária (2009) e Pedagogia da Participação - Trabalhando com Comunidades (2002 e 2006).

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