O compromisso social do intelectual, por Luiz Eduardo Cani, Sandro Luiz Bazzanella e Elcemara Aparecida Zielinski

Publicado no Justificando.

O que é um intelectual?

Esse questionamento nos parece preparatório do debate que pretendemos instigar neste artigo. Descreveremos dois paradigmas de intelectuais que nos parecem aqueles mais representativos em nosso imaginário acerca do tema: um intelectual pesquisador e um intelectual orgânico. Esta divisão, porém, é apenas de ordem didática, uma vez que inexiste esta distinção entre intelectuais pesquisadores e orgânicos.

O compromisso de todo e qualquer intelectual é com as questões do mundo em que se encontra inserido num determinado tempo.

Sob tais pressupostos, inicialmente pode-se afirmar que um intelectual se caracteriza por ser filho do seu tempo, pelo empenho de colocar o próprio tempo em pensamento estudioso. É curioso, impaciente e comprometido com a compreensão das questões públicas e, com a ação comum que se estabelece entre os seres humanos na construção do mundo leva a público seus posicionamentos, suas concepções e interpretações potencializando o debate.

Mas há também uma visão tradicional do intelectual, talvez a mais arraigada no imaginário social,  que é a de uma pessoa enclausurada numa biblioteca, preferentemente particular, na qual desenvolve estudos aprofundados resultando em complexas teorias. Intelectuais com este perfil são de significativa importância, pois desenvolvem conceitos fundamentais a as mais diversas áreas do conhecimento humano, subsidiando inclusive o debate público.

Neste artigo tomamos pressuposto o conceito de intelectual vinculado à primeira definição, correspondente à pessoa engajada em debates públicos, orais ou escritos, sobre temas relevantes para a sociedade, que assume a dimensão pública como espaço da política, dos negócios da polis. Esse é o paradigma que se apresenta a partir de Sócrates, filósofo ateniense que viveu entre 469 a.C. e 399 a.C., condenado à morte por envenenamento (cicuta) por criticar em praça pública a democracia ateniense.

A rejeição à classificação do paradigma intelectual advindo de Sócrates se constitui pelo uso de adjetivos pejorativos, os quais são bastante representativos na sociedade brasileira em curso atualmente por meio dos apelidos: coxinha ou mortadela. A finalidade é pôr em xeque a credibilidade do interlocutor, ou mesmo cercear o debate em torno das questões públicas urgentes na atual conjuntura.

Os dois paradigmas de intelectuais coexistem. Não poderia ser diferente, considerando as diferenças entre as pessoas, bem como a condição ontológica de seres lançados no mundo. Como notou Martin Heidegger, compete-nos constituir um projeto de autenticidade que nos permita participar de sua construção (do mundo) de forma autêntica. Assim, o papel do intelectual está também atrelado ao engajamento na dimensão pública da vida, não somente no ambiente de clausura da biblioteca. Esse intelectual se organiza com uma classe social a qual pertence e, em razão dessa organização, foi chamado por Antonio Gramsci de intelectual orgânico.

Esse intelectual, que chamamos de alternativo, não é, na verdade, um alternativo, mas um clássico. Não é por acaso que o paradigma é Sócrates. A história dos principais pensadores ocidentais, desde a antiguidade, se confunde com as histórias das participações deles nos debates públicos, com os legados construídos a partir dos debates travados na condução da polis.

Definido que, para nós, intelectual é um pensador engajado nos assuntos da polis, não necessariamente graduado em curso superior e muito menos necessariamente vinculado a alguma instituição de ensino, resta-nos refletir sobre as condições de possibilidade da intelectualidade, ou seja, do contexto em que um intelectual está inserido.

Dentre todas as potencialidades da constituição de um intelectual, duas afirmações nos causam mal-estar. A primeira delas, de Peter Sloterdijk (1947…), formulada na abertura da conferência Regras para o parque humano, proferida em 17 de julho de 1999 num colóquio realizado no castelo de Elmau, dedicado aos pensamentos de Martin Heidegger (1889-1976) e de Emmanuel Levinas (1905-1995)[I]. A segunda, de Jürgen Habermas (1929), formulada em entrevista publicada recentemente no jornal El País[II].

Se estivermos desatentos, podemos acabar pensando que as afirmações são excludentes. Entretanto não pensamos desse modo. Sloterdijk não nega a necessidade de leitores, do mesmo modo que Habermas não exclui os amigos dos interlocutores necessários à existência de um intelectual. O fato de não haver exclusão expressa por nem um dos dois, parece-nos suficiente para que possamos afirmar que existe uma relação de complementaridade entre os pressupostos dos autores.

Sem pretensão de esgotar o debate, ou de excluir outras possibilidades, é preciso ter presente que o papel do intelectual na sociedade é participar dos debates públicos sobre os assuntos de interesse geral, provocando o debate, questionado e, por decorrência lógica, possibilitando aos possíveis leitores e interlocutores uma significativa experiência com a potência do pensamento, pensando o próprio tempo. Nos debates públicos, orais ou escritos, todos podem ser interlocutores.

A interlocução serve para auxiliar o intelectual a aprimorar os argumentos, não é uma guerra travada contra os inimigos, ainda que possam existir opositores.

Desse modo, o intelectual cria condições de possibilidade para que os cidadãos interessados compreendam o que está a se passar na sociedade em determinado momento. Facilita a compreensão de determinados fenômenos e fica à disposição para esclarecer eventuais dúvidas. Essa é a dimensão pública da intelectualidade na qual apostamos.
________________________________________

Luiz Eduardo Cani é Mestrando em Desenvolvimento Regional na Universidade do Contestado, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal, graduado em Direito pela Universidade Regional de Blumenau. Professor de Direito na Universidade do Contestado.

Sandro Luiz Bazzanella é Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em Educação e Cultura pela Universidade do Estado de Santa Catarina, graduado em Filosofia pela Faculdade Dom Bosco. Professor Titular de Filosofia na graduação e no mestrado da Universidade do Contestado.

Elcemara Aparecida Zielinski é Graduanda em Direito pelo Instituto Blumenauense de Ensino Superior da Sociedade Educacional de Santa Catarina
________________________________________

[I] “Livros, observou certa vez o escritor Jean Paul, são cartas dirigidas a amigos, apenas mais longas. Com esta frase ele explicitou precisamente, de forma graciosa e quintessencial, a natureza e a função do humanismo: a comunicação propiciadora de amizade realizada à distância e por meio da escrita.” In: SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad. de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.

[II] “Para a figura do intelectual, tal como a conhecemos no paradigma francês, de Zola até Sartre e Bourdieu, foi determinante uma esfera pública cujas frágeis estruturas estão experimentando agora um processo acelerado de deterioração. A pergunta nostálgica de por que já não há mais intelectuais está mal formulada. Eles não podem existir se já não há mais leitores aos quais continuar alcançando com seus argumentos.” In: HERMOSO, Borja. Entrevista. Jürgen Habermas: “Não pode haver intelectuais se não há leitores”. El País, São Paulo, 07 maio 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/25/eps/1524679056_056165.html>.

Nenhum comentário: