A inescapável discussão da questão fiscal, por Flavio Fligenspan
Publicado no Sul21.
O atual Secretário da Receita Federal revelou ao jornal Valor, na edição de 10 de maio (p. A2), que as diversas renúncias fiscais atualmente em vigor no Brasil alcançam a cifra de R$ 270 bilhões, perfazendo cerca de 20% da arrecadação federal. Além do valor ser alto demais, em termos absolutos e relativos, ainda pesam sobre as renúncias outros problemas, como a falta de avaliação dos diversos programas quanto a custos e resultados e quanto ao uso alternativo destes recursos, a deficiente fiscalização e os constantes desvios, para não falar do ordenamento legal, no mais das vezes enviesado pelo poder político e econômico dos favorecidos. Como exemplo, vejam-se os casos da isenção de tributação sobre lucros e dividendos, caso quase isolado no mundo, e da desoneração da folha de pagamentos, medida que se estendeu no tempo e que teve abrangência setorial muito além da proposta inicial.
O tema das renúncias será apenas uma parte da discussão mais ampla sobre a questão fiscal que o País terá que fazer, inevitavelmente, ou na campanha eleitoral – menos provável – ou no momento imediatamente seguinte à posse do vencedor, no início de 2019. Fomos longe demais com o desarranjo fiscal e com a falta de capacidade política para dizer não aos grupos organizados de pressão que arrancaram vantagens de sucessivos governos. A situação limite que se criou tem apenas uma vantagem, expor sua excrescência e seu caráter de injustiça social e tornar impossível sua continuidade.
A discussão deve passar pelos temas mais relevantes em termos de valores e em termos de forças políticas envolvidas. E, claro, vai avançar mais ou menos na dependência do vencedor do pleito, da força política que ele conquistar na eleição e da composição que conseguir fazer no Congresso. Mas não tenhamos ilusões, o novo Congresso vai continuar sendo um representante de forças hegemônicas conservadoras, como a história brasileira está a demonstrar. E uma de suas formas conhecidas de disputar é tentar ganhar tempo, esperar o desgaste do governo e acabar por não mudar nada ou quase nada.
Os grandes temas serão o da reforma tributária, o da reforma da previdência, o das contribuições parafiscais e o anteriormente referido, das renúncias. A revisão da Emenda Constitucional do “teto dos gastos” e uma revisão de gastos vinculados fixados no Constituição de 1988 devem entrar na ordem do dia. É por este bolo de receitas e de despesas que os diferentes setores da sociedade vão se digladiar, para ver quem efetivamente vai “pagar o pato” daqui para frente. Ou seja, o pano de fundo continuará sendo o antigo tema da distribuição, dos ônus e dos benefícios das relações entre setor público e setor privado.
As apostas mínimas são no sentido de avançar, pelo menos um pouco, na tributação das rendas mais elevadas e na tributação do capital, diminuindo a vergonhosa regressividade do sistema atual. Simplificação tributária e unificação de regras entre os entes federados deve ser um guia. A previdência muda, com certeza, incluindo idade mínima mais elevada num plano de ajuste gradual no tempo; durante alguns anos a idade mínima vai aumentar em degraus, até chegarmos a um patamar mais alto. E a desvinculação das aposentadorias e pensões do valor do salário mínimo vai ser uma pauta das mais delicadas. Pelo lado das renúncias, já ficou claro que o atual estágio é insustentável por qualquer critério de análise; elas vão diminuir. A questão é saber, depois da árdua disputa, quem vai ceder o que e em que percentual.
Os perdedores deste novo arranjo terão seu grau de rejeição diminuído, se obtiverem compensações. Porém, tais compensações não podem contemplar vantagens fiscais, com o que se anulariam os ganhos das mudanças, provavelmente em detrimento das finanças públicas, como é comum acontecer na nossa história. As novas vantagens devem acontecer no plano institucional, com racionalização e maior agilidade das relações entre o capital e o Estado, incluindo mudanças no Judiciário, que proporcionem mais segurança jurídica e maior celeridade na resolução de conflitos, e abertura de novos espaços de valorização do capital, como na área de exploração mineral e de infraestrutura. Contudo, há que se ter cuidado, porque a perda de regalias fiscais pode abrir espaço para a reivindicação de uma exagerada amplitude institucional, confundindo modernidade e agilidade com desregulação e liberdade para avançar em terrenos como relações trabalhistas e (des)controle ambiental.
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Flavio Fligenspan é Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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