A classe trabalhadora não é mais aquela? Sinais estranhos na terra de Marlboro, por Reginaldo Moraes
Publicado no Jornal da Unicamp.
Há uns 50 anos, os estudiosos diziam que países subdesenvolvidos eram sociedades com “terciário inchado”. A migração do campo para a cidade não era acompanhada da criação de indústria. Assim, milhões de pessoas se acomodavam em empregos precários e mal pagos no setor de comércio e serviços de baixa qualificação. Enquanto isso, país desenvolvido era país industrializado.
Não durou muito essa estória. No meio dos anos 1970, um escritor conservador dizia que os Estados Unidos – líder e modelo de país industrializado – tinham virado uma sociedade pós-industrial, uma economia de serviços. Só que nessa nova versão, os serviços não eram o lugar do atraso, eram o centro da criatividade, dos empregos em tecnologia e ciência, em planejamento e projeto, em consultoria financeira. Eram o campo daquilo que mais tarde Robert Reich chamaria de “analistas simbólicos”, os sofisticados e ultramodernos trabalhadores que não produzem objetos, não manuseiam coisas, mas criam símbolos, imagens, conceitos, desenhos, códigos informáticos, descobertas tecno-científicas.
Mas nada disso escondia a realidade: nos Estados Unidos, modelo de Primeiro Mundo, estava-se criando um conjunto de bolsões cada vez maiores de Terceiro Mundo. A coisa iria piorar quando o Segundo Mundo (o bloco socialista) se desagregasse, virando uma selva de desempregados e máfias. Na pátria americana, indústrias se desmanchavam e migravam para países de baixos salários e baixos impostos. Aquilo que ficava dentro do território americano se transformava brutalmente. Os grandes oligopólios verticalizados se desmembravam – terceirizavam atividades, subcontratavam e viabilizavam a criação de um “precariado” cada vez mais vulnerável, além de uma “subclasse” simplesmente miserável. O contingente de necessitados do Food Stamp (uma espécie de bolsa família americano) atingiu o recorde de 50 milhões de indivíduos, mais de 15% da população toda.
Enquanto isso, o mundo sindical derretia. A taxa de sindicalização americana, historicamente baixa, comparada com a Europa, chegara, contudo, a uns 35% nos anos 1950. Caiu para menos de 10% nos anos 2000. As bases dos sindicatos desaparecem, os filiados também. Uma vez, o deslumbrado trabalhista Tony Blair disse que a luta de classes tinha acabado. O megaempresário Warren Buffet foi mais prudente: “A luta de classes continua existindo – e a minha classe está vencendo”. Blair poderia ter evitado a lição.
E o que acontece do lado de baixo, daqueles que estão perdendo essa guerra? Aí existem subculturas diferentes. De um lado a chamada White working class, que um dia foi a base social dos sindicatos e do Partido Democrata. Os trabalhadores brancos que havia sentido o gosto do emprego de longa duração, com benefícios indiretos, plano de saúde e de aposentadoria, ascensão em carreiras longas.
Agora vivem de bicos e expedientes, a carreira e o emprego viraram a oportunidade de “tarefas” ocasionais, negociadas individualmente e a cada dia ou semana. Essa White working class está sitiada, principalmente, nas velhas cidades do nordeste e meio-oeste do país, o coração da grande indústria ianque. Mas cresce, também, no sul, para onde as fábricas se mudaram graças às leis e tradições anti-sindicato.
Outra parte da classe trabalhadora abriga aquilo que ainda se costuma chamar de “minorias”. Negros do centro degradado das grandes cidades. Latinos e outros imigrantes pobres. Essa é a massa dos empregos da “economia de serviços” de baixa renda – limpeza, zeladoria, cuidadoras, manutenção de edifícios e estradas, transporte e armazenagem, comércio de rua, quiosques e bodegas. Tradicionalmente imune a sindicatos (e por eles rejeitados), assediados por igrejas evangélicas pentecostais, parecem um reino da alienação e do desespero.
Contudo, aí também se nota uma crescente fermentação de rebeldia e associativismo. Desenvolve-se nesse terreno um “sindicalismo-movimento social” peculiar. Não mais calcado e organizado a partir da empresa (fabril ou comercial), mas no terreno da moradia – o barrio, a neighborhood, o gueto. Surgem como movimentos por direitos civis – não ser roubado pelos patrões, ter direito a escola e assistência social, eliminar discriminações de todo tipo.
Manifestam-se por meios diferentes – passeatas, ocupação de prédios e praças públicas. Criam worker centers que são uma mistura de local de reunião, centro de serviços de apoio mútuo, centros de cultura. Aqui e ali, firmam acordos com sindicatos tradicionais, quando estes se abrem à iniciativa. A própria central americana, tradicionalmente burocrática e direitista, foi sacudida por transformações sucessivas, desde meados dos anos 1990. Em 2003, lançou um movimento comunitário voltado para esses trabalhadores, majoritariamente informais e imigrantes – o Working America.
Em suma, o tempo não para e a luta de classes segue em frente, apesar da negação de trânsfugas como os Toni Blair da vida. O empresário Buffet ainda pode dizer que sua classe está vencendo. Está. Mas, aparentemente, aos trancos e barrancos, a nova classe trabalhadora reconhece sua nova identidade, reconstrói suas ferramentas, visualiza um novo horizonte de lutas e conquistas.
Não foram apenas dirigentes políticos que “desistiram” da classe trabalhadora ou decretaram o fim de seu protagonismo político. Nas últimas décadas proliferaram novos “teóricos” da pós-modernidade e das plataformas pós-materialistas.
Alguns foram bem longe, decretando o caráter estrutural e definitivo desse esvaziamento político. Manuel Castells, por exemplo, no final dos anos 1990, dizia que a “era da informação” tinha colocado em segundo plano os trabalhadores, incapazes de influir sobre o conflito ou coesão social, o cenário politico e ideológico. O proletariado não seria mais o “sujeito político” da transformação, uma identidade política capaz de liderar um projeto de sociedade. Para o sociólogo espanhol, os novos movimentos “identitários” e sem definição de classe, eram os novos portadores da mudança, na nova era [Castells, 1997, pp. 354-360]. Visões como essas se espalharam.
E, no entanto, para incomodar a “teoria”, aqui e ali apareciam sinais do antigo personagem rebelde, que se recusava a assinar seu atestado de óbito. A greve geral dos franceses contra a política de austeridade, na França do meio dos anos 1990, a renovação da central sindical americana (AFL-CIO), depois de décadas de burocratismo conservador, um novo sindicalismo naquele país, o chamado alt-labor, baseado em conflitos e não na gestão de acordos de gabinete, alicerçado em trabalhadores negros e latinos, precários e marginalizados pelas velhas estruturas de representação trabalhista.
Será isso apenas um sopro final, a última visita da saúde, precedendo a morte? Ou estamos diante da metamorfose da velha luta de classes, a reaparição da velha toupeira, que durante todo esse tempo cavou seu caminho sob o solo?
Aquilo que se vê nos Estados Unidos talvez seja a reedição da famosa frase de Marx: os países adiantados colocam diante dos atrasados um espelho de seu futuro. Os sindicatos brasileiros – e toda a esquerda – ganhariam muito se observassem como o conflito renasce e se reconfigura, naquele lugar onde o capital firmou seu quartel general.
O sindicato da grande fábrica de automóveis, do petróleo e da química continuará a existir. Não se faz chapa e perfilados de aço em quiosques e microempresas individuais, não se extrai e refina petróleo em fornos domésticos. Mas ao lado desse núcleo capitalista mais formal e concentrado, há todo um mundo de capitalismo selvagem, com trabalhadores fragmentados, amontoados em bairros periféricos, sem direitos, seduzidos por assembleias religiosas, domesticados pela TV, cortejados por demagogos ultraconservadores. Um mundo a roubar das trevas e a conquistar para a luz.
Este artigo é trecho do livro Classe Trabalhadora Capitalismo, classe trabalhadora e luta política no início do século XXI: experiências no Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e França, de Marcio Pochmann e Reginaldo Moraes, ed. Perseu Abramo, 2017.
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