Filhos da pátria: comemoração hipócrita do dia das crianças em um país que pede redução da maioridade
Artigo originalmente publicado no site Justificando, por Renato da Fonseca Janon, Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de São Carlos-SP.
Ao menino de rua
que sofre com o vento
e que dorme com a lua
Dizem: “Eu te arrebento”.
Ao menino que trabalha
dia e noite na labuta
e ganha só migalha
Dizem: “Filho da Puta”.
Do menino sonhador,
ontem órfão esquecido
hoje homem sem amor
Dizem: “é um bandido”
Mas o menino de rua
que abraça o relento
e beija a estátua nua
Diz: “sou teu rebento”.
Hoje pela manhã, ao ir de casa para o trabalho, eu me deparei com uma cena que me fez refletir sobre uma forma de infanticídio mais cruel do que aquela prevista no código penal (1): a hipocrisia. A procissão de carros enfileirados aguardava religiosamente pelo próximo sinal. Do lado de fora, um menino franzino tentava vender doces para motoristas amargos, que desviavam o olhar, como se não tivessem coragem de encará-lo. Era um garoto maltrapilho, sem rosto, sem nome, sem futuro. Talvez por isso ninguém queria vê-lo, quem sabe temendo enxergar, no reflexo dos seus olhos, o retrato da nossa indiferença assassina.
Indiferença que mata a infância de milhões de crianças país afora. São milhares de Josés, pedindo esmolas ou lavando vidros nas esquinas das nossas cidades. Milhares de Marias, meninas do interior, trazidas para serem domésticas em nossas casas e tratadas como “da família”, sem salário e sem herança. Milhares de Pedros, obrigados a abandonarem a escola desde tenra idade para garantirem o sustento de seus pais com o suor do seu rosto. São os órfãos da pátria “mãe gentil”, abandonados como os capitães de Areia, de Jorge Amado, explorados como os meninos carvoeiros, de Manuel Bandeira. São os filhos da nossa insensatez.
Segundo o observatório da criança, mantido pela Fundação Abrinq (2), existem mais de 3,3 milhões de crianças e adolescentes (entre 5 e 17 anos) em situação de trabalho infantil no Brasil, o que leva a uma evasão escolar sem precedentes entre os países em desenvolvimento. O guia “Cenário da Infância e Adolescência – 2016″ aponta, ainda, que, das crianças entre 0 e 14 anos, 44% encontram-se em situação de pobreza e 17% na condição de extrema pobreza, engrossando um enorme contingente de miseráveis. Daí por que, segundo o estudo, quase 188 mil crianças estão desnutridas e 69 mil muito abaixo do peso, em estado de risco de vida iminente. Em pleno século XXI, enquanto parte da classe média bate suas panelas teflon, indignada com o preço do caviar, essas crianças não têm, sequer, um prato de comida e, ainda por cima, são tratadas como indesejáveis.
Quem nunca ouviu alguém dizer que a culpa é dos pobres, que fazem muitos filhos?
Ou então que é melhor as crianças estarem trabalhando do que na rua roubando, como se não houvesse a opção de estarem na escola estudando? É o cinismo nosso de cada dia, alimentado pela moral seletiva daqueles que defendem a redução da maioridade penal e veem o trabalho infantil como “um mal menor”, ao mesmo tempo em que criam seus filhos sem limites e sem respeito, legando uma geração de crianças mimadas e inconsequentes.
Hipocrisia assassina, que mata de fome e de bala. Não é por outra razão que quase 20% dos homicídios no país são praticados contra crianças e adolescentes, sendo 80% deles com arma de fogo. Por dia, 29 crianças e adolescentes são assassinadas no Brasil, de acordo com estudo da Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (Flacso), divulgado em junho deste ano (3). Essas mortes brutais colocam o país em terceiro lugar em número de homicídios de crianças e adolescentes em uma lista de 85 nações. E para quem ainda diz que não existe racismo, vai mais uma triste constatação: o número de vítimas negras é quase três vezes maior que o de brancas.
De acordo com relatório Violência Letal Contra as Crianças e Adolescentes do Brasil, da Flacso, os homicídios são a principal causa do aumento drástico das mortes de crianças e adolescentes por fatores externos. Os assassinatos representam cerca de 2,5% do total de mortes até os 11 anos e têm um crescimento acentuado na entrada da adolescência, aos 12 anos, quando causam 6,7% do total de mortes nessa faixa etária. Entre as mortes ao 14 anos, 25,1% são por homicídio, percentual que atinge 48,2% na análise dos óbitos aos 17 anos. E cada um de nós, que vira o seu rosto para esses menores, ajuda a puxar o gatilho da arma que os mata. Quantos não se calaram diante do Chacina da Candelária ou não incentivaram os linchamentos de menores pegos praticando pequenos furtos? Basta ler os comentários hidrofóbicos que infestam as redes sociais quando alguém adolescente comete um ato infracional. Ninguém mais espera por justiça ou pela recuperação do infrator. A opinião pública – instigada pela opinião publicada – clama, brada, esbraveja por vingança. O país que matou Pixote e consagrou a lei do mais forte é o mesmo que, hipocritamente, ainda se pergunta porque nossas esquinas andam tão violentas ou porque tantos jovens se perdem nas ruas das nossas cidades. E continuamos fingindo que não temos nada a ver com isso, virando o rosto para não enxergarmos a realidade.
Nessa semana, em que muitos irão celebrar o dia das crianças, devemos nos perguntar se, de fato, temos algo a comemorar. Enquanto compramos brinquedos para os nossos filhos, milhões de crianças estão condenadas a virarem adultos em plena infância. O menino do farol continua aguardando na esquina, à espera de alguém que lhe estenda a mão. Ele não quer presentes. Ele quer apenas um futuro. Até quando vamos continuar desviando o nosso olhar? Como dizia José Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.”
Maravilhoso, Daniel. Sensível e certeiro. Ainda bem que existem pessoas que se serem responsáveis por eles e não desviam seus olhares, ao contrário, concentram. Parabéns pela análise e pelo texto.
ResponderExcluirMaravilhoso, Daniel. Sensível e certeiro. Ainda bem que existem pessoas que se serem responsáveis por eles e não desviam seus olhares, ao contrário, concentram. Parabéns pela análise e pelo texto.
ResponderExcluirObrigado pelos elogios, Márcia. Mas o texto é de autoria do Juiz Renato da Fonseca Janon. Eu só fiz compartilhar e difundir esse belo texto. Seguimos na luta!
ResponderExcluirAbraços,
Daniel Samam