Mercantilização da sonegação
Por Paulo Kliass*, publicado originalmente dia 23/08/2016, na Carta Maior.
A cada semana que avança um pouco mais o processo do golpeachment, o governo interino deixa mais evidente a sua profunda dependência para com o tucanato. A equipe de Temer conta com uma base política e parlamentar contraditória, onde procura conciliar os desejos gulosos da vasta sopa de letrinhas do chamado Centrão fisiológico com os requisitos mais ideológicos e doutrinários dos formuladores ligados ao PSDB.
Para dar conta dessa difícil tarefa, o interino conta com a não desprezível ajuda da grande imprensa, que há meses tem promovido uma verdadeira blindagem ao seu governo. Imaginem-se quais não teriam sido as manchetes e reportagens dos últimos tempos caso fosse outra a ocupante do cargo no Palácio do Planalto. O governo do vice presidente tem se caracterizado por uma sucessão de escândalos atingindo seus auxiliares de primeiro escalão - envolvimentos sucessivos em corrupção, gafes e gastanças. Isso para não falar do silêncio sepulcral a respeito da continuidade da recessão da economia, do aumento do desemprego, dos níveis elevado da inflação e por aí vai.
Os grandes meios de comunicação resumem-se a insistir em suas cansativas loas à suposta competência técnica dos integrantes da equipe econômica. E torcem ansiosamente para que surja no horizonte algum sinal de reversão da tendência de ladeira abaixo da atividade econômica. Afinal, essa era mesma a intenção do austericídio, iniciado pela duplinha dinâmica de Joaquim Levy e Nelson Barbosa. E essa opção estratégica de ajuste foi mantida e aprofundada por Henrique Meirelles e Ilan Goldfajn.
Temer e os tucanos: dependência.
A articulação estreita do governo com o financismo se realiza por meio de figuras experimentadas da seara peessedebista. Ali estão ocupando cargos estratégicos Pedro Parente na Petrobrás, Maria Sílvia Bastos Marques no BNDES, José Serra no Itamaraty, Eduardo Guardia na Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda, entre tantos outros.
A centralidade da opção estratégica de Temer permanece sendo a liberalização e a privatização em sentido mais amplo dos termos. Para além dos estragos conjunturais provocados pelo arrocho fiscal, a intenção primordial é promover um verdadeiro e definitivo desmonte do Estado. Com isso, lograr a eliminação de toda e qualquer capacidade de se utilizar das políticas públicas para promover o desenvolvimento social e econômico em algum momento do futuro. A palavra de ordem se resume a mercado, mais mercado e ainda um pouco mais de mercado.
A novidade mais recente dessa tucano-dependência da interinidade encontra-se em um projeto de lei em tramitação no Senado Federal. Não por acaso a autoria da peça é de José Serra, assim como foi com a proposta de estabelecer teto e limite para o endividamento público. Trata-se do PLS 204, de 2016, que “dispõe sobre a cessão de direitos creditórios originados de créditos tributários e não tributários dos entes da Federação”, de acordo com a ementa disponível na página do Senado.
Devo, não nego - R$ 1,5 trilhão.
A proposição do atual chanceler interino consegue ser - a um só tempo - ousada e catastrófica. Serra pretende criar um mecanismo legal para privatizar a negociação das dívidas tributárias emitidas pelos tesouros públicos, sejam os de nível municipal, estadual ou o próprio federal. Uma loucura! Do ponto de vista simbólico representa um atestado de falência para um dos atributos mais típicos do Estado: a capacidade de arrecadação e de cobrança de impostos.
A intenção é criar um verdadeiro mercado secundário de negociação de débitos para com a administração pública, em especial das quantias tributárias não pagas de empresas para com a União. Atualmente, há estimativas de que o estoque total desse tipo de dívida não paga atinja o valor de R$ 1,5 trilhão. Nesse grande bolo há de tudo: desde as dívidas reconhecidas e em processo de cobrança judicial, até aquelas ainda em busca de “negociação” nos espaços dos conselhos de contribuintes. Basta recordarmos aqui os escândalos todos que vieram à tona recentemente, por meio da chamada Operação Zelotes.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) é um órgão subordinado ao Ministério da Fazenda e está encarregado de avaliar os pleitos das grandes empresas a respeito de dívidas tributárias que as mesmas questionam. São valores bilionários, envolvendo grandes corporações, como é o caso dos bancos. Apenas em um único caso do Itaú, onde era diretor até poucos meses atrás o atual presidente do Banco Central, a Justiça anulou um perdão irregular que havia sido concedido pelo conselho de um débito tributário superior a R$ 330 milhões.
Pois bem, a proposta de Serra abre o precedente de legalizar a “cessão do direito creditório”. Assim, por exemplo, a União poderia vender um direito tributário que tem sobre uma empresa qualquer. Ao invés de estimular o aperfeiçoamento das cobranças de tais dívidas pelas instâncias da própria administração pública, ela passaria a vender esse título para quem tivesse interesse no negócio. Obviamente que o comprador exigiria uma enorme taxa de deságio, pois ali estariam embutidos os custos e os riscos envolvidos em tal operação.
Débito tributário é crime e não mercadoria.
Os especialistas do mercado financeiro enchem a boca para aplicar seus conceitos do financês. Nesse caso, o mercado estaria “precificando” a cobrança das dívidas tributárias. Por esse mecanismo, haveria uma definição do desconto a ser obtido, de acordo com o perfil do título em questão. Cada título teria o seu próprio “preço” nesse mercado secundário da sonegação. Alguma dúvida respeito de que tipo de empresa possui estrutura de departamento jurídico e financeiro em condições de conseguir bons resultados naquilo em que a Secretaria da Receita do Brasil e a Procuradoria da Fazenda Nacional ainda não tinham obtido êxito?
Afinal, se a dívida fosse mesmo incobrável, o que levaria uma empresa financeira resolver pagar antecipadamente à União por esse tipo de papel sem futuro? Estaria disposta a praticar uma filantropiazinha básica e colaborar com a recuperação das finanças do governo federal? Óbvio que não. Trata-se simplesmente de “business, as usual”. As empresas topariam ficar com os débitos tributários para os quais enxerguem alguma perspectiva de recuperação dos valores - seja pela via judicial ou pela negociação. A exposição de motivos do senador cita algo em torno de R$ 110 bilhões como sendo o potencial de negociação nesse mercado que ele pretende instituir. E quem ficaria com os débitos considerados mesmo irrecuperáveis?
Ora, se esses valores estão sendo precificados, é porque alguma probabilidade de recuperação do débito já foi calculada. Assim, não faz o menor sentido que a União institucionalize o prêmio à sonegação, permitindo que seja criado esse mercado secundário especulativo com esse tipo de papel. Cabe a ela exatamente a conduta oposta: aperfeiçoar e profissionalizar cada vez a sua própria capacidade de cobrança das dívidas reconhecidas. Mas os sinais emitidos pelo núcleo duro de Temer vão em sentido contrário. O governo pede a urgência para a votação da matéria, que já está em condições de ser apreciada pelo plenário do Senado.
Débito tributário não pode ser transformado em mais um instrumento de acumulação de capital. É importante deixar claro que dívida do setor privado para com a União não é mercadoria. Aquele que sonega ou não paga o valor devido ao fisco está cometendo um crime. E assim deve ser tratado pelo Estado brasileiro.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
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