"Lava Jato atacou e destruiu as bases do direito brasileiro", diz Jessé Souza


Professor da Universidade Federal Fluminense, com doutorado em Heidelberg, na Alemanha, e pós-doutorado na New School for Social Research, nos Estados Unidos, o sociólogo Jessé Souza, 56, acaba de publicar "A Radiografia do Golpe" (Leya), livro em que condena as articulações que levaram ao afastamento de Dilma Rousseff. Em entrevista ao colunista da Folha de S. Paulo, Marcelo Coelho, ele apresenta os pontos principais de sua análise.

Folha - Que fatores, a seu ver, determinaram o afastamento de Dilma Rousseff?


Em primeiro lugar, os interesses na manutenção de um rentismo perverso, que significa uma rapina sobre o resto da sociedade em benefício de poucos. A presidenta decidiu atacar o rentismo reduzindo os juros. Quis romper a política de compromisso de Lula e perdeu a batalha.

A partir daí, a elite econômica –com seus dois braços, o Congresso comprado e a grande imprensa sócia da rapina– criou uma base social conservadora junto à fração da alta classe média, parte dela com interesses no rentismo e outra parte receosa com a ascensão social dos pobres. Apropriou-se da narrativa das "jornadas de Junho", distorcendo o sentido das manifestações e federalizando pautas locais.

Essa foi uma das principais novidades em relação ao mensalão: uma fração social desde sempre conservadora e sempre vencida no voto, foi apresentada pela manipulação televisiva como o "povo nas ruas".

A outra novidade foi a cooptação da fração corporativa do aparato jurídico-policial do Estado. Uma casta com altos salários e vantagens que fogem da transparência, e se acredita acima da sociedade, adorou posar de guardiã da moralidade, aumentando seus privilégios e colonizando a agenda do Estado no sentido da restrição dos direitos individuais para aumentar ainda mais seu próprio poder.

Foram esses quatro elementos conjugados que articularam o golpe. As contradições entre eles tendem a ocorrer a partir de agora.

Folha - Como explicar o impeachment de um presidente claramente identificado com propostas neoliberais, como Fernando Collor?


Sim, as condições históricas eram outras e acredito que Collor seja um ponto fora da curva: um presidente patologicamente narcísico sem nenhuma credibilidade e que era percebido pelo público como mero assaltante dos recursos do Estado. Todos os "golpes" –Getúlio, Jango e Dilma– tiveram, entretanto, o sentido de restaurar a regra de que este é um país para poucos e onde o dinheiro compra tudo.

Folha - A deterioração do quadro econômico, durante o governo Dilma, não teve peso em sua queda de popularidade?


Tem gente que acredita naquela frase "é a economia, tolinho" como elemento definidor da política. No entanto, "tolinho" é quem acredita que a economia enquanto tal decida alguma coisa. Toda crise econômica precisa ser interpretada e é sua interpretação –no nosso caso a que se torna vitoriosa em um contexto de distorção sistemática da informação– que permitiu a percepção da crise como causada unicamente pela presidenta.

Na realidade, a crise fiscal tem a ver com a captura do Estado pela elite financeira que compra o Congresso e a política para que sua riqueza não seja taxada e ainda força o Estado a "pedir emprestado" via dívida pública –ou seja, nós todos que somos feitos de tolos que pagamos a conta– aquilo que a evasão fiscal retira da sociedade como um todo.

Como 90% dos analistas econômicos representam esses mesmos interesses rentistas, a "interpretação" dominante de temas complexos para o público tende a ser pervertida de fio a pavio.

Folha - Você afirma no livro que a "agenda da moralidade" no Brasil foi construída paulatinamente para rebater a agenda do combate à desigualdade. Mas, durante os governos Sarney, Collor e Fernando Henrique, nenhum partido bateu mais na tecla da moralidade do que o PT.


Eu critico no livro tanto a direita quanto a esquerda. Nossa esquerda sempre foi colonizada pelo discurso de falso moralismo da direita. Não à toa Sergio Buarque e Raymundo Faoro, baluartes do moralismo conservador, são heróis da esquerda. O PT ajudou a criar as instituições sem controle hoje em dia. Uma monstruosidade jurídica que hoje persegue e criminaliza até mesmo a liberdade de expressão.

Folha - Partiu dos juízes do Supremo Tribunal Federal a proibição de financiamento corporativo a campanhas eleitorais. A Igreja, com seu poder de arregimentação popular, foi importante na aprovação da Lei da Ficha Limpa. Como explicar que esses passos para a reforma política tenham sido dados, enquanto os governos petistas foram incapazes de liderar tal processo?


O PT era, no governo, um partido minoritário que sempre defendeu o financiamento público e sempre foi derrotado no Congresso cuja imensa maioria havia sido comprada via financiamento privado. Os erros do partido me parecem residir em outro lugar: deveria ter combatido o corporativismo nefasto das corporações jurídico-policiais e deveria ter contribuído para uma imprensa mais plural.

Folha - Seu livro se refere constantemente aos "donos do dinheiro", ao "1% mais rico", à "elite do dinheiro". O conceito não perderia algumas nuances? Enquanto o setor industrial, representado pela Fiesp, aderia abertamente ao impeachment, líderes do setor financeiro, como os presidentes do Bradesco e do Itaú, declararam-se contrários ao afastamento de Dilma. O atual ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, foi presidente do Banco Central no governo Lula, e no seu segundo mandato, com amplo apoio da imprensa, Dilma nomeou Joaquim Levy para a Fazenda...


O Bradesco nomear o ministro da Fazenda não significa apoio, mas, sim aproveitar a chance de "exercer diretamente" a política econômica de um governo acuado. Consistia em ajuste fiscal para a educação e saúde da população e liberdade para juros gordos para a meia dúzia que manda em tudo. Essa é política econômica imposta a Dilma –que resistiu depois– e que foi derrubada para que tenhamos esse mesmo projeto agora sem resistência alguma. De resto, a união entre todas as frações da elite econômica advém do fato de que todos eles confiam seus ganhos ao rentismo e aos ganhos pelos juros estratosféricos.

Folha - Na formulação clássica do conceito de populismo, pensava-se na presença de um líder providencial, capaz de representar os pobres e redistribuir renda por ato de vontade política... Embutida nessa crítica, estava a ideia de que tal estratégia minimizava o papel da auto-organização das classes populares e da formação de um partido político sólido. A distribuição de renda surgia como um favor, embalado na simbologia de uma representação que no fundo não era democrática nem participativa. Você não acha que o petismo, ao se transformar em lulismo, sofreu desse problema?


O conceito de populismo tem algo de extremamente conservador e ridículo. O ridículo é chamar qualquer ajuda à maioria de abandonados e de trabalhadores super-explorados –cerca de 70% da população brasileira– de populismo. Nesse caso, democrático seria, por pura exclusão lógica, atender aos interesses da ínfima elite.

O conservadorismo é imaginar que existam classes conscientes de seus interesses o tempo todo. Se nossas classes médias –que efetivamente poderiam ser mais inteligentes do que são– são feitas de tolas todo dia pelas doses diárias de veneno midiático, imaginemos as classes abandonadas que não têm defesa cognitiva possível a esse tipo de ataque a não ser o racionalismo prático do dia a dia que a fazem escolher os líderes que efetivamente melhoram seu bem estar concreto e aumentam suas chances de vida.

A única classe "consciente de si" entre nós é a elite da rapina. Seus braços econômicos, políticos, midiáticos e jurídicos se uniram maravilhosamente quando perceberam a chance do golpe em benefício próprio.

Folha - Na atual crise, deu-se o fato inédito de a Operação Lava Jato ter levado à cadeia alguns dos empresários mais poderosos do país, como Marcelo Odebrecht. Isso não representa uma virada importante, aumentando o prestígio de um juiz como Sérgio Moro?


A crença na Lava Jato como instância purificadora de nossa realidade é a maior fraude de todo esse processo que vivemos. Fraude construída por manipulação midiática.

Primeiro, escolheu-se dar toda a ênfase à narrativa do PT como "organização criminosa" como se a corrupção política a serviço do mercado não fosse sistêmica e não abrangesse todos os partidos e todos os níveis da administração. Aliado a isso o "timing" da operação e seus vazamentos ilegais se casou perfeitamente com o golpe parlamentar lhe dando narrativa e justificação. Alguém com mais de cinco anos acredita em coincidências e papai Noel?

Segundo, não se constrói nenhuma realidade jurídica nova minando as bases do direito que são as garantias individuais e o processo legal formal. Nada atacou e destruiu tanto as bases do direito brasileiro quanto a Lava Jato. Houve uma "des-diferenciação" do direito que se politizou e regrediu historicamente perdendo sua autonomia.

Depois não é próprio da ação jurídica, que é restrita ao seu escopo de garantir direitos violados, a tarefa de reformulação social. Essa é a tarefa da política.

Folha - O vazamento das conversas entre o empresário Sergio Machado e Romero Jucá, nos quais se cogitava de meios para abafar a Operação Lava Jato, é classificado por você como "seletivo". Seria um artifício dos meios de comunicação para dar ilusão de imparcialidade? Na mesma linha, os jornais noticiam caixa dois na candidatura Serra e pagamentos solicitados por Temer à Odebrecht. É possível, pensando nestes exemplos, falar em "indignação seletiva" da mídia contra o PT?


Dois pontos são importantes esclarecer nesta questão. A imprensa, como o judiciário, não é uma coisa só. Existem conflitos importantes entre órgãos mais e menos isentos e existem também profissionais que se fazem respeitar e conquistam algum espaço de autonomia. A imprensa precisa da aparência de isenção e isso cria espaços alternativos importantes.

O que a fração de imprensa mais conservadora e menos isenta fez –muito especialmente os oligopólios de TV– e faz foi tentar e efetivamente conseguir demonizar e criminalizar o discurso de esquerda –uma esquerda muito "light" diga-se de passagem– o que ela foi aprendendo a fazer cada vez melhor nos últimos anos. No entanto, seja para assaltar um banco, seja para assaltar a soberania popular, é sempre mais fácil achar aventureiros para a empreitada do que dividir o bolo. Na hora de dividir o butim do golpe é que surgem os conflitos. Essa é a fase em que estamos hoje. A luta de morte aqui é para salvar as aparências. Nem todos conseguirão.

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