Quando a direita começou a exibir suas garras, por Maria Luiza Franco Busse

Publicado no Outras Palavras.


Há 21 anos um repórter sagaz e uma editora sensível publicaram um assunto cujas importância e conseqüência futura poucos perceberam. No dia 7 de dezembro de 1997, o então Jornal do Brasil estampava no alto da página 5 do Caderno B o título A extrema direita faz escola na PUC. A matéria tratava de O Indivíduo, jornal de alto conteúdo reacionário dedicado a desqualificar as atividades da Semana da Consciência Negra promovidas na universidade católica da elite carioca e primeira instituição de ensino a praticar a política afirmativa de cota racial e inclusão de jovens de baixa renda.

Produzido por quatro estudantes com idades entre 17 e 25 anos, a pauta do tablóide não se restringia a estimular o racismo. Ia do deboche à homossexualidade, passando pela condenação da solidariedade humana, até a intransigente defesa da desigualdade. Na ocasião, a leitura provocou a declaração do reitor, padre Jesus Hortal: “ publicação com boa impressão gráfica mas de contudo francamente deplorável”. Visto a partir dos acontecimentos políticos do Brasil de 2018, O Indivíduo foi um dos tantos arsenais plantados pela máquina de guerra do pensamento obscuro e atrasado acionado contra os avanços e conquistas civis e sociais.

A distribuição de O Indivíduo no conhecido “Pilotis da PUC”, local de referência das lutas estudantis progressistas e de manifestações contra a ditadura, causou forte reação no campus da zona Sul do Rio de Janeiro. No dia 21 de novembro, o caderno de Cidade do JB publicou “Jornal de estudantes agita pilotis da PUC”. O Coletivo de Cultura da PUC mandou carta para o jornal dizendo que “o boletim agrediu subjetivamente o Movimento Negro e declaradamente os homossexuais”. No dia seguinte, mais uma matéria no Cidade: “PUC vai punir autores de jornal”. Em nota, o reitor afirmava que a sanção poderia variar da repreensão à suspensão, e dizia: “os redatores se apresentam como campeões do individualismo mais extremado e atacam tudo o que lhes desagrada. Não quero negar a legítima liberdade de expressão e o pluralismo de opiniões. Porém, não posso concordar com o individualismo que ignora a solidariedade humana e o sentido cristão da fraternidade. Além disso, o que me parece completamente inadmissível é que, com argumentos falaciosos, se veicule o ódio, o desprezo e a injúria direta contra os que pensam ou agem de modo diferente dos autores do panfleto”, concluiu Hortal.

O ódio, o desprezo e a injúria destacados pelo reitor chamaram a atenção da percepção ampliada do repórter do Caderno B. Ele enxergou para além de um Fla X Flu estudantil e, com o apoio da editora, trouxe para o assunto a análise de três cientistas das áreas de política, psicanálise e filosofia. Com isso, em retrospectiva, o Caderno B protagonizou uma das páginas que faz lembrar o jornalismo como trabalho intelectual comprometido com o pensamento crítico e fonte credenciada de pesquisa.

Na abertura da matéria, os entrevistados foram unânimes: “estamos observando ao primeiro movimento organizado de extrema direita ao longo de toda a história da PUC”.

Nas declarações em separado, analisou o cientista político: (…)”conseguiram extrair o pior dos dois mundos: o pior do mundo moderno, o individualismo selvagem; e o pior do mundo tradicional: o congelamento das hierarquias. É o anarquismo de direita postulado por Robert Nozik (que) propõe filosofia política radical individualista (…) com redução ao Estado mínimo (que) deve apenas se responsabilizar pela segurança pública.(…). Só é exigido do indivíduo o respeito ao direito à propriedade. É a comunidade em oposição à sociedade com a volta da ordem hierárquica do velho patriarcalismo. Esse conservadorismo é gregário e solidarista mas a partir do estabelecimento de relações hierárquicas entre os agentes. Daí o autoritarismo paternalista, misógino e racista”.

O professor de filosofia chamou de “estupidez” a hipótese de um sujeito sem coletivo: “O indivíduo nunca é isolado. O indivíduo verdadeiramente só se afirma em sociedade, com a herança social que faz. A teoria do darwinismo social é o que legitima a escravidão, o colonialismo, o nazifascismo e o racismo”. E foi incisivo: “é um punhado de agressões que exigem medidas judiciais por parte dos grupo ofendidos. É violência que se exerce travestida de legítima liberdade de expressão”.

O psicanalista definiu o episódio como “assustador”, e prosseguiu: “ Esta pode ser a ponta de um iceberg de uma coisa muito maior que deve ter ramificações na sociedade brasileira que sequer suspeitamos. (…) O que impressiona no editorial é a recusa da idéia de comunidade e a noção de democracia como uma rebelião das massas. O boletim é potencializador de violência. Este discurso reacionário pode oferecer uma camisa para os desavisados e desamparados. Ele visa a arregimentação marcada pelo discurso da violência, apesar de estar no plano verbal”.Ouvidos novamente diante da realidade atual, exceto o filósofo porque já falecido, o cientista político e o psicanalista são outra vez unânimes em afirmar que estavam diante de um fato muito mais significativo do que se imaginava. Uma reação paradigmática do conservadorismo, só uma década depois da Constituinte, ao “ensaio geral para a democracia mais profunda que se expandia na luta contra a desigualdade e o racismo”, observou o cientista político. No diagnóstico sobre o mal estar que se abateu sobre o Brasil desde o golpe de 2016 e que desaguou na eleição da extrema direita, o psicanalista analisa que esse processo “impar no Cone Sul se deu pela maneira da nossa redemocratização que anistiou torturadores impedindo o acesso à memória crítica sobre o que foi a ditadura. A novidade histórica é que os “derrotados” com o fim da ditadura saíram dos armários. Não têm mais pudor em dizer e se apresentar como de direita e de extrema direita. Perderam a vergonha. O hoje é o ponto de chegada desse processo que vinha se organizando desde a Constituinte. A sociedade organizada não se deu conta, fomos pegos de surpresa”.

Trechos de "O Indivíduo"

“Neste jornal deve imperar o estritamente pessoal, pensado e escrito por um indivíduo sozinho. Num tempo em que se fala muito em coletividade, nos excluídos, nos sem alguma coisa ( e todos somos sem alguma coisa), no velho proletariado, nas tribos, e tudo mais, queremos nos dirigir ao ser humano de um para um. Porque é assim que as coisas são: Individuais.”

“Não podemos sobrepor a ideologia coletivista ao poder da consciência individual. Quem vai perceber as verdades não é a coletividade, nem o PT, nem o PFL, e sim cada indivíduo. É possível estar certo quando todos em volta estão dizendo que você está errado.”“Uma Semana de Consciência Negra depõe contra a própria raça negra como se esta fosse composta de pessoas que precisassem desesperadamente de auto-afirmação. (…) A escravidão era comum entre as tribos africanas e todos sabemos que os negros das tribos mais fortes foram cúmplices dos europeus no comércio de escravos. Assim sendo, sugiro que os negros que desejam reparação façam árvores genealógicas para cobrá-la dos descendentes dos negros escravizados.”

“Justiça social? Um termo exótico. A justiça social implica que tenha havido uma premeditação de ter existido uma injustiça social, uma hipótese aparentemente conspiratória da História. As coisas são como são e infelizmente Deus é um grande criador de desigualdades, independente do que a Teologia da Libertação queira nos dizer.”
“Pois eu acho que, se não é uma doença (o homossexualismo), é no mínimo algo muito peculiar evolutivamente.”
“O mundo é dividido entre os que penam e os que agem.A função dos professores universitários não é mudar a realidade e sim percebê-la. Se não, estará se formando uma massa de militantes.”
____________________________________________________________

Maria Luiza Franco Busse, 65, jornalista há 45 anos. Mestre e doutora em Semiologia e pós-doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ_ Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Nenhum comentário: