“Se a coisa tá preta, a coisa tá boa”- debatendo educação antirracista com Rose Cipriano



A bela pele retinta brilha em todo o seu corpo. Os marcantes traços faciais, como os olhos expressivos e a boca carnuda, agregados aos seus 1,80 de altura, lembram as características de uma rainha ou melhor, de guerreira africana. Mas não é só isso, a voz grave e potente de Rose Cipriano, professora da rede municipal de Caxias e pré-candidata à deputada estadual do Rio de Janeiro, bem como a sua arguição política impressionam a todos desde um primeiro contato.

Professora militante no campo da educação desde 1992, Rose tem atuado principalmente contra o processo de sucateamento das instituições públicas de Caxias, em especial, da rede educacional do município. Sua luta vai desde a valorização dos profissionais de educação à árdua tarefa de se posicionar contra as ações fascistas do programa Escola sem Partido.Como se sabe, o objetivo principal desse projeto é perseguir professores através da coação e das denúncias àqueles que simplesmente que trabalham conteúdos fundamentais na promoção do senso crítico e na construção da cidadania em suas salas de aula.Outro alvo que o programa busca atacar é a Lei 10.639(Ensino de História e cultura afro brasileira e africana) e, consequentemente, aos professores comprometidos com um ensino que dê visibilidade à contribuição da raça negra para a sociedade brasileira.Frente a tanto retrocesso, a professora Rose sai em defesa de uma educação antirracista nas escolas e universidades e segue na luta pelo combate ao racismo de maneira geral. Afinal, o racismo estrutural e institucional tem um grande peso sobre o fracasso e a evasão escolar nas escolas públicas brasileiras.

Os  episódios noticiados midiaticamente  no mês passado evidenciam uma pressão social originária da luta histórica do movimento negro há pelo menos 30 anos para se discutir de maneira profunda as questões raciais que marcam a formação da identidade do nosso povo.O fato envolvendo situações racistas que causou maior indignação nas redes sociais e no mundo  real ocorreu durante os Jogos Jurídicos entre os dias 31 de de maio e 3 de junho, envolvendo alunos da Pontifícia Universidade Católica, PUC-Rio. No dia 2 de junho, após uma partida de futebol, quando uma integrante da torcida arremessou cascas de banana em um atleta negro da Universidade Católica de Petrópolis, UCP. No dia seguinte, (3 de junho), os torcedores da PUC-Rio imitaram macacos diante de torcedores negros da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Uerj. Horas depois, estudantes da mesma universidade chamaram uma atleta de handebol da Universidade Federal Fluminense, UFF, de macaca. A instituição universitária é considerada reduto intelectual e de excelência técnico-profissional pela alta burguesia carioca e acumula histórico de práticas racistas tanto por parte dos alunos como pelo corpo docente.

Na mesma semana do episódio citado, o cantor sertanejo Cezar Menotti afirmou, em tom de piada, no programa da Rede Globo “Altas Horas”, que o gênero musical samba era considerado música de bandido. A plateia, formada majoritariamente por pessoas brancas, e gargalhou juntamente com o apresentador Sérginho Groisman, considerado um dos artistas da emissora e um dos mais sensíveis a temas sociais. Música marginalizada na década de 1920, o samba fortalece toda ancestralidade da cultura negra, cerceada e perseguida por uma elite escravocrata que forçava de maneira violenta os padrões culturais europeus no Brasil. A cantora de samba negra, parlamentar e ativista política Leci Brandão respondeu a Cezar por meio de um vídeo de maneira contundente ao afirmar que: “Samba não é música de bandido não. Bandidagem é quem compra a mídia pra gente ter que ouvir um monte de música que não traz nenhuma consciência; bandidagem é quem consegue fazer com que a cultura seja toda direcionada pra quem tem poder”.

Estes dois episódios expressam a grande chaga racista que se perpetua no comportamento da sociedade brasileira e a necessidade urgente de se abordar conteúdos disciplinares relacionados à Lei 10. 639 nas escolas.O psicanalista e teórico de referência da temática Frantz Fanon explica conceitualmente o fenômeno do racismo no texto “ Racismo e Cultura” lido no Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros, realizado em 1956. Fanon ressalta que: “Se a cultura é o conjunto dos comportamentos motores e mentais nascido do encontro do homem com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o racismo é sem sombra de dúvida um elemento cultural. Teve de se renovar, de se matizar, de mudar de fisionomia. Teve de sofrer a sorte do conjunto cultural que o informava.”

A importância do ensino de cultura africana nas escolas públicas, onde se concentra a maior parte de alunado formado por pretos e negros, e a necessidade de se desconstruir a associação do negro como escravo numa condição submissa e depreciativa na história são tarefas fundamentais dos educadores que lutam por uma educação descolonizadora.A valorização da contribuição cultural, social e econômica do povo negro no processo de formação nacional não só fortalece identidade étnico brasileiras como assegura políticas de qualidade da educação a este grupo formado por mais de 54% da população brasileira. As cotas raciais nas universidades foram uma política de sucesso que propiciou o acesso da população negra à universidade, mas ainda é preciso que se assegure assistência estudantil a estes alunos nos espaços acadêmicos e corporativos. 

A filosofa norte-americana, professora e ativista histórica do movimento Pantera Negra, Angela Davis, nos diz que“ Numa sociedade racista não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”. Com a palavra, a professora militante e pré-candidata à deputada estadual do Rio de Janeiro, a nossa querida Rose Cipriano:

Como você analisa estes casos extremos de situações de racismo escancarando-se e acentuando-se nos últimos dois anos pós-golpe jurídico político de Estado?

Após golpe da presidenta Dilma que, por sinal, foi a primeira mulher a ocupar o cargo mais alto do país,um sinal de alerta vermelho se acendeu para nós mulheres feministas. Pois, claramente,esse golpe não foi apenas político, jurídico e midiático, ele foi também marcado pelo machismo e por ações misóginas durante todo o processo.

Não há dúvida que a sociedade brasileira é racista e que, neste momento,quando a nossa jovem democracia, de apenas 30 anos,sofre  com um governo ilegítimo que retira os nossos direitos, conquistados com muita luta, o avanço do conservadorismo e, consequentemente, de ações protofascistas, tais como o racismo, afloram .

Avalio que essas manifestações racistas também são uma resposta à resistência e aos avanços da população negra.Pois, mesmo que as desigualdades e o racismo ainda persistam, negros como eu, e todos aqueles que não são brancos,passamos a ocupar espaços que nunca nos foram permitidos antes.

É fato que a filha da doméstica está chegando à universidade, o que não exclui dizer que a situação das empregadas domésticas,que em sua grande maioria é composta por mulheres negras, é um exemplo paradigmático dos resquícios desse racismo estrutural.Se pegarmos uma linha histórica, vemos que se findou-se a escravidão, tivemos a reforma trabalhista de Vargas, mas somente no século XXI essas mulheres passam a ser consideradas como trabalhadoras com direito trabalhistas assegurados. 

Ou seja, levamos mais de 100 anos para garantir às trabalhadoras domésticas direitos trabalhistas de outras profissões.Tudo isso com a classe média surtando, porque agora não poderiam mais ter à disposição a força de trabalho oferecendo-lhes apenas casa,comida e uns trocados,numa clara escravidão moderna.

Quais os maiores entraves hoje do professor para se abordar a Lei 10.639 em sala de aula e que “conselhos” você daria para estes profissionais que encontram essas dificuldades em suas instituições?

Apesar da lei ter completado 15 anos agora em 2018,as ações dos sistemas de ensino para a efetivação da mesma ou são incipientes ou em alguns lugares nem existe.

A formação é aliada fundamental na participação em grupos de educação antirracistas, grupo de educadores e de intelectuais negras e negros que estão se organizando em ações teóricas e práticas, como já nos ensinou Paulo Freire,  para incluir a história afro-indígena ao currículo. 

Existe uma dificuldade que é o isolamento, mas, apesar disso, o que observamos são ações individuais das professoras e professores que procuram trabalhar os elementos da lei dentro das suas próprias disciplinas. Essa iniciativas são fundamentais,mas insuficientes para alterar um currículo eurocentrado, cuja história afro-indígena é completamente ignorada.

Em tempos de projetos como o da escola com mordaça,adeptos ao racismo religioso e ao fundamentalismo cristão,que prejudicam a construção de uma escola democrática, vêm tentando impedir a atuação docente das professoras e professores que são subsidiados pelas leis 10639/03 e 11645/08.Como exemplo, temos o caso da professora em Macaé que recebeu um processo administrativo da secretaria de educação e da administração por estar trabalhando o filme “Besouro”.
Apesar desses retrocessos, nós temos todo uma legislação que embasam a nossa prática pedagógica: a Constituição Federal de 1998,  as próprias leis 10639/03 e 11.645 /08 , a LDB  Lei  de Diretrizes e base da educação e o Estatuto Nacional de Promoção e Igualdade Racial ou seja racistas de plantão não passarão.

Recentemente, houve o chamado “caso da cenoura”na Rede Municipal de Caxias onde os alunos ganharam de lembrança de páscoa duas cenouras e uma cópia de receita devido a compra excessiva do legume pela gestão. Expresse o que você sentiu enquanto educadora ao saber do caso e como você acha que os gestores governamentais de Caxias vem tratada a educação pública da classe popular?

As escolas municipais aqui em Caxias têm vivenciado um total descaso com a educação no município e que nos últimos anos só vem piorando com a gestão do MDB (antigo PMDB). Entre as mazelas podemos citar a falta de professores, os alunos sem receber material escolar e uniformes há dois anos, além da extrema precariedades dos prédios. Nos causa muita indignação como um governo que ao invés de garantir uma educação de qualidade DISTRIBUI CENOURA, até mesmo estragadas,junto a uma receita,para alunos que, muitas vezes,apenas contam com a alimentação escolar como uma das poucas refeições diária.

Esse lamentável episódio demonstra o escárnio com a população que utiliza os serviços públicos e também a falta de transparência na gestão dos gastos públicos.

Como você mulher negra, militante e socialista acredita que seja a construção de educação antirracista nas escolas públicas?

O racismo está na forma como a sociedade se estrutura, a escola não está fora desse contexto: uma sociedade racista reproduz escolas tão racistas quanto. Portanto, é fundamental reconhecer que o racismo também se manifesta no cotidiano escolar para então desconstruí-lo. É preciso dizer que o racismo é uma das causas do racismo escolar. Muitas teses já falam sobre isso. 

É urgente garantirmos uma educação pautada nos direitos humanos, que respeite a diversidade que está presente na escola, que consiga trabalhar com os diferentes grupos étnicos que compõem a sociedade brasileira, em especial,indígenas e africanos.  É preciso fazermos uma reparação histórica com essas culturas. 

Vou contar aqui mais um caso, esse ano ainda,uma professora veio me procurar porque ela tem uma aluna que a cada cacho de cabelo que nasce do seu lindo Black , ela corta, pois quer ter o cabelo liso com o da professora que é branca.

Essas meninas, assim como muitas outras crianças negras, precisam de ações que construam uma identidade negra positiva. E isso somente será possível com um currículo afro-centrado e descolonizador, tendo em vista que o nosso currículo sempre foi construído por uma cultura europeia em detrimento da história afro-indígena.

Aí vocês vão me interpelar sobre como fazer isso... E eu prontamente vou responder: é preciso buscar, construir, criar, desenvolver materiais que contribuam para a eliminação do eurocentrismo dos currículos escolares e que contemplem a diversidade racial brasileira, bem como insistir na presença de “assuntos negros” em qualquer que seja a disciplina. Por que não falar da matemática e Egito? Do escândalo geológico na África subsaariana ? Da biologia que não pode provar a superioridade branca? Da presença da linguagem africana no nosso português, ou como dizia a nossa grande feminista negra, Lélia Gonzales, o nosso pretoguês. E por aí vai...

Para construirmos uma educação antirracista é necessário combater o racismo que extermina física e simbolicamente a população negra. Sobretudo os jovens negros das favelas e periferias. 

Quais “sementes”Marielle Franco deixa para as futuras gerações de jovens negras e de que forma você hoje observa essa inspiração nestas meninas neste momento?

Na noite de 14 de março, eu e Marielle estávamos juntas no evento Jovens Negras movendo as estruturas.

Naquela noite e nas horas que se seguiram, não tive dúvida da representatividade da Marielle para as mulheres e, em especial, para nós mulheres negras. O seu legado foi, sem dúvida, de que as mulheres precisam ocupar todos os espaços: na cultura, na política e nas mais diversas áreas da sociedade, para que rompamos de vez com a nossa história de tantas tragédias. Devemos ocupar, ur-gen-te-men-te, a política, porque as nossas questões não serão pautadas enquanto não estivermos lutando nesse espaço. Audre Lorde já nos dizia, o silencia não vai nos proteger.

Um inegável legado da Marielle foi que as vidas negras importam. A vidas das mulheres negras importam! E que, sem dúvida, a saída está na nossa organização coletiva.
Marielle nos ensinou pelo exemplo. Sua mandata foi coletiva, ela deu vozes a pautas que atingem diretamente as mulheres, a população negra e toda a comunidade LGBTIs.

Ela exerceu a sororidade feminina que tanto reivindicamos.

Não foi o assassinato, o feminicídio e o crime político de Marielle que levou pessoas do mundo inteiro a pedirem por justiça,foi, sim, a sua curta, mas potente e transformadora história de vida.

Marielle, Presente! Anderson, Presente!
Marielle Vive!
Ubuntu!
Eu sou porque nós somos!
Nós somos porque ela foi!
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Esta entrevista foi realizada por Mariana dos Reis, Professora do Instituto Benjamin Constant e doutoranda em educação pela UERJ.

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