Onda de esquerda é tão grande quanto conservadora, mas só uma vira notícia, por Almir Felitte

Publicado no Justificando.


Nos últimos anos, já virou lugar comum dizer que o mundo está vivendo uma onda conservadora. Não sem razão, é claro. Não faltam exemplos de grupos políticos conservadores conquistando poder ao redor do globo. Tampouco faltam exemplos de manifestações assustadoramente fascistas saindo de seus armários. Porém, do outro lado do espectro político, há um crescimento de igual ou, talvez, até maior proporção, estrategicamente ignorado pela grande mídia.

Talvez o exemplo mais famoso que mostra esses dois lados da moeda política mundial é a última eleição presidencial dos EUA. Durante todo o processo eleitoral norte-americano, a mídia mundial fez um escarcéu diante da possibilidade de Trump vencer. O barulho tinha motivos reais: Trump é um bilionário com um histórico de declarações misóginas e racistas cujas principais propostas tinham, também, cunho racista, como a construção de um muro para barrar a entrada de mexicanos e o endurecimento das guerras no Oriente Médio.

Sem dúvidas, o barulho da grande mídia contra Trump se justificava. O que não se justificou, por outro lado, foi o silêncio “ensurdecedor” de boa parte da mídia mundial a respeito do candidato que mais tinha chances de vencer Trump: Bernie Sanders, talvez o único grande político americano autodeclarado socialista.

Sanders, de certa forma, encarnava movimentos como o “Occupy Wall Street” ou o “Somos os 99%”. Assim como Trump, porém, à esquerda, ele representava o anti-establishment, o anti-sistema. Apesar das pesquisas[1] demonstrarem que ele tinha mais chances de vencer contra qualquer Republicano, os holofotes da mídia recaíram sobre Hillary, que acabou sendo escolhida como a representante dos Democratas nas eleições.

Assim, a eleição de Trump acabou sendo um recado claro para os EUA, que talvez poucos tenham entendido. O povo americano procurava alguém anti-sistêmico, não um continuísmo de Obama. Porém, em um país pouco aberto à diversidade ideológica, um socialista que poderia ter mudado a história do país foi barrado por seus próprios companheiros e colocado de escanteio pela grande mídia.
Mas a procura por líderes com uma postura de combate ao establishment não é exclusividade estadunidense. Na Europa, há um movimento similar. As eleições francesas foram outro exemplo disso. E, por lá, a atuação da grande mídia foi igualmente tendenciosa.
Muito barulho foi feito para denunciar a ascensão da candidata da extrema-direita, Le Pen, cuja xenofobia era, talvez, o principal traço político. O mesmo barulho, porém, não era ouvido sobre o candidato que representava o outro lado do espectro político. Tido como um nome da extrema-esquerda, Mélenchon não causava o mesmo furor na mídia que Le Pen, apesar de ter propostas ainda mais anti-sistêmicas, com críticas não só à União Europeia, como ao próprio capitalismo e até mesmo uma proposta de aproximação ao bolivarianismo.

Porém, assim como fez nos EUA, a grande mídia tratou de jogar os holofotes sobre algum candidato que representasse o establishment. Na França, o escolhido foi Macron, um liberal tido como “não-político”, a quem a imprensa tratou de pintar como um “centrista”, uma figura supostamente ponderada em um continente ameaçado por extremismos.
E Macron cresceu justamente sobre o medo de que a França fosse tomada pelo discurso fascista de Le Pen, muito embora todos soubessem que a vitória dela era impossível em um segundo turno eleitoral. Os resultados, porém, apesar da vitória de Macron ao fim do pleito, mostram que, também na França, a maior parte do povo francês buscava um candidato anti-establishment. E boa parte deles enxergou a melhor opção na “extrema-esquerda”.
Com uma diferença de menos de 2%, por muito pouco, Mélenchon (19,58%) não ficou à frente de Le Pen (21,30%) e disputou o segundo turno contra Macron (24%).

O resultado da eleição foi que, hoje, a França é governada pelo Presidente “centrista” Macron, que tem dois principais apelidos entre o povo francês: o “Pequeno Napoleão”, por governar de forma autoritária, sem dar muitos ouvidos ao resto do país, e “O Presidente dos Ricos”, já que tomou uma série de medidas que privilegiou a elite francesa ao mesmo tempo em que atacou os direitos das classes trabalhadoras. Haja direita nesse “centrismo” de Macron…

Por outro lado, Mélenchon surpreendeu e, agora, é visto como a figura mais influente da oposição francesa. Para 42% dos franceses, Mélenchon[2] é a maior figura da oposição na atualidade, enquanto apenas 29% consideram que seja Le Pen. Outro dado que deve ser levado em conta, também, é que, nas eleições, a extrema-esquerda de Mélenchon ficou bem à frente dos cerca de 6% de votos da centro-esquerda francesa.
E esse é um movimento que tem acontecido em diversos países. Inclusive em nossos vizinhos sul-americanos.
Com 25% dos votos válidos, Gustavo Petro, do Movimento Colômbia Humana, se tornou, segundo a imprensa do país, o primeiro[3] candidato da esquerda a ir para o segundo turno presidencial colombiano, desbancando o “centrista” Fajardo. Agora, terá pela frente um páreo duro com o primeiro colocado, Duque, herdeiro da direita uribista no país.

Por muito pouco, algo semelhante não ocorreu no Chile. No primeiro turno das eleições presidenciais do país, no ano passado, a direita liberal chilena de Piñera ficou em primeiro, com 36% dos votos, seguida da centro-esquerda de Guillier, com 22%. Logo atrás, faltou pouquíssimo para a Frente Ampla, formada principalmente por jovens do movimento estudantil de esquerda, chegar ao segundo turno, com 20% dos votos.

Vale lembrar que as pesquisas apontavam um resultado completamente diferente, com apenas 8% de votos para a candidata do movimento[4], Beatriz Sánchez. Também vale lembrar que a eleição ficou manchada pela confissão do economista-chefe do Banco Mundial de que a instituição manipulou dados para favorecer Piñera na eleição.

Fora da América do Sul, mas ainda em ambiente latino, no México, o esquerdista Obrador é favorito para as eleições presidenciais do início de julho, com 52%[5] das intenções de voto e 79%[6] de chances de ganhar. Obrador conseguiu arrebatar o sentimento nacionalista mexicano para a esquerda e, com larga vantagem nas pesquisas, tem tudo para acabar com a hegemonia da direita no país.

Voltando para a América do Sul, é importante lembrar do fracasso neoliberal de Macri na Argentina, que pode, agora, voltar a ver o crescimento da esquerda na figura de Kirchner, a quem muitos chegaram a dar como politicamente morta.

Se Kirchner está longe de representar uma esquerda radical, certo é que seu discurso contrasta bastante com o liberalismo irresponsável macrista, que levou o país mais uma vez ao FMI. Além disso, em um país que tem como cultura fazer a política nas ruas e nos sindicatos, nesse momento de fervor, é plausível pensar que a esquerda argentina possa ousar mais do que no passado.
Por outro lado, alguns dos países sul americanos onde a esquerda lidera vêm enfrentando certas turbulências políticas. Porém, tais turbulências parecem mais relacionadas a problemas internos da esquerda do que a uma ameaça de crescimento da direita.
No Equador, se Lenin Moreno está sendo visto como um traidor de Rafael Correa, certo é que o mesmo somente se elegeu através da alta popularidade do líder da “Revolução Cidadã” no ano passado. Já na Bolívia, o maior problema é a falta de um substituto para Evo Morales, que, ao que tudo indica, deve buscar a reeleição e pode acabar desgastando sua imagem no país.

Voltando ao “Velho Mundo”, vale ainda destacar as experiências bem-sucedidas de Portugal e Islândia, que se recuperaram da Grande Crise de 2008 com governos de esquerda. Aliás, a “Geringonça Portuguesa”, coalização esquerdista que governa o país, virou um exemplo tão forte de recuperação econômica para a Europa que Mario Centeno, Ministro das Finanças do país, foi nomeado Presidente do Eurogrupo, numa ação que, para a imprensa do continente, representou o fim simbólico da austeridade.

Do mesmo modo, a Islândia se recuperou da crise de 2008 através de um governo de esquerda que teve medidas como a nacionalização de bancos culpados pela crise, a punição de agentes financeiros e a criação de mecanismos de participação popular. Após isso, os liberais ainda chegaram a voltar ao poder, mas, envolvidos em uma série de novos escândalos, acabaram caindo, alçando a esquerda ao poder mais uma vez na figura da primeira-ministra Jakobsdottir.
Isso tudo só pra ficar no âmbito partidário. O que dizer, por exemplo, da série de protestos impressionantes em Hamburgo, ano passado, durante as reuniões do G20? Ou então das recentes greves contra a política de austeridade e de ataque aos trabalhadores de Macron na França? Ou, ainda, da grande movimentação dos sindicatos argentinos contra o acordo de Macri com o FMI?
E por que não incluir, também, o Brasil nessa onda mundial de esquerda? Afinal, desde 2002, só a esquerda foi capaz de eleger um Presidente no Brasil. E, ao que tudo indica, em condições normais, assim ainda será por muito tempo. Foi preciso um golpe midiático-parlamentar para retirar a esquerda do Planalto e, ao que parece, será preciso outro para que a esquerda não volte, ainda este ano, através das urnas.
Impressiona que, mesmo após todo o bombardeamento midiático, mesmo após toda a perseguição judicial, mesmo após sua prisão, Lula siga disparado como o favorito para vencer as eleições deste ano. Se, na prática, Lula fez um Governo de centro-esquerda com concessões demais ao liberalismo e ao mercado, certo é que, no ideário da população brasileira, Lula é o maior representante atual de tudo o que se pode chamar de esquerda no país. E é esse imaginário de esquerda que o coloca à frente de todos os demais concorrentes.
Vivemos uma época de grandes mudanças mundiais e o Brasil certamente não é uma ilha isolada de todo esse contexto. Para muitos, a ordem liberal caminha como uma morta-viva e o mundo apenas ainda não decidiu qual o novo caminho que irá tomar. Um momento muito parecido com o que a geopolítica mundial viveu durante as décadas de 1920 e 1930[7].

Esse contexto e o crescimento da extrema-esquerda em todo o mundo nos mostram que o momento é de ousar. Não é mais um momento para se buscar uma conciliação de classes artificial que, no fim, só acabaria esmagando os de baixo. É um momento em que a esquerda pode, tranquilamente, colocar na mesa suas propostas “pé na porta”, sem medo de irritar o mercado, afinal, agora, é o mercado quem está irritando a população.

A grande mídia sabe disso e tenta, a todo momento, criar uma falsa ideia de que os liberais constituem um “centro ponderado” que ainda pode salvar o mundo dos “extremismos”. Ignoram o extremismo da desigualdade e da exploração aos quais o capitalismo liberal nos trouxe.

À esquerda brasileira, assim, resta reconhecer que o cenário mundial é favorável a propostas mais radicais na economia e na política, além do fato de que as conciliações de classe não são mais possíveis. Ou se está do lado do trabalhador, ou se está do lado dos agentes do mercado financeiro.
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Almir Felitte é advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
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