Os modelos de revolução do século XX e seus limites, por Ion de Andrade

Publicado no Jornal GGN.


Em Marx e Engels, a revolução socialista é entendida como um processo de tomada do poder por um partido operário que, ato contínuo, coletiviza os meios de produção. A primeira revolução socialista no mundo, a Comuna de Paris de 1871, veio a corroborar esse modelo de revolução, dando-lhe uma comprovação científica objetiva e exterior à intervenção dirigente de um Partido Comunista. A Comuna de Paris funcionou como uma espécie de “fenômeno natural” que provou uma teoria científica.

Entretanto, a comuna foi dramaticamente derrotada e esmagada. O terror que afligiu os revolucionários de Paris e que nos chega até hoje em fotos de época obrigou o movimento internacionalmente a avaliar as suas estratégias, consolidar os acertos e corrigir os erros.

O modelo leninista de revolução, com um partido comunista monolítico à frente, retomou os fundamentos teóricos de Marx e Engels e a prática da Comuna, e os adaptou. Os êxitos da revolução de outubro estão na releitura dos erros da Comuna e das naturais insuficiências de Marx, que não podia antever a revolução vitoriosa na periferia do capitalismo.

Diferentemente de Marx, Lênin funda um Partido Comunista centralizado e disciplinado, capaz de ser a ponta de lança do movimento revolucionário e a ferramenta estratégica do proletariado para a tomada do poder. O modelo leninista de partido e de revolução seriam exportados para o mundo inteiro como modelos definitivos de organização revolucionária.

Poucos partidos comunistas conseguiram manter uma formulação teórica própria em meio à autoridade de Moscou em matéria de revolução. Um desses partidos foi o PCI, com a produção intelectual de Antonio Gramsci, apartado que estava, no auge da sua melhor elaboração, tanto da vida partidária quanto das pressões da Internacional Socialista. A prisão submeteu Gramsci a uma condição de observador incomum da vida política italiana e internacional, dando-lhe surpreendente liberdade de elaboração que inexistiria se não estivesse preso.

A genialidade de Antonio Gramsci permitiu-lhe, durante a sua prisão, o estudo das peculiaridades da revolução socialista no Ocidente desde os anos 20 e 30 do século passado, escassos anos depois da eclosão da Revolução Russa, cuja força gravitacional alinhava de forma absoluta a elaboração dos comunistas no mundo inteiro.

Gramsci produziu rica reflexão sobre o Estado, entendido como Sociedade Política - Sociedade Civil ou como Ditadura - Hegemonia e estudou os caminhos da revolução na Itália adequando o marxismo-leninismo a uma concepção que deveria considerar, na tomada do poder, o processo de acúmulo “molecular” de influência do proletariado no componente estratégico do Estado no Ocidente: a Sociedade Civil, a partir da qual o Poder seria exercido por consenso.

Apesar disso, e sem estabelecer qualquer mistificação da violência como forma isolada de chegada ao poder, Gramsci nunca cedeu à ideia de que a transição ao socialismo poderia ser obtida por via parlamentar, assim como nunca enunciou a ideia de transição pacífica. Sobre o desfecho da crise de hegemonia, diz Gramsci: “Pode-se dizer, portanto, que todos estes elementos são a manifestação concreta das flutuações de conjuntura do conjunto das relações sociais de força, para culminar na relação militar decisiva”. O seu modelo, portanto, compreende que os avanços políticos do proletariado são de natureza preparatória a uma tomada do poder, cuja eclosão se dá na Crise Orgânica, oportunidade em que emerge como uma das saídas possíveis, fundando uma nova ordem diferente da anterior. O processo de acúmulo é longo e evolui de fases subterrâneas e moleculares ganhando velocidade e amplitude à medida que vai sendo consolidada a hegemonia do proletariado.

Para ele a “guerra de posição” a que o proletariado no Ocidente está obrigado, por força da presença maciça da Sociedade Civil no aparelho estatal, se opõe à “guerra de movimento”, mais adequada aos Estados restritos, como a Rússia de 1917. A luta pela conquista da hegemonia na Sociedade Civil, previsivelmente longa, deveria ser conduzida no interior do próprio Estado capitalista, permitindo um acúmulo de energias e um amadurecimento do proletariado para o exercício de um poder político alcançável apenas pela via revolucionária, entendida, tal como em Lênin, como uma “tomada de poder” na qual um Partido Comunista, coeso e disciplinado, teria papel dirigente.

As três maiores diferenças entre Lênin e Gramsci se encontram, em primeiro lugar, na abordagem do “tempo” de exercício da política antes da revolução, mais longo no Ocidente; em segundo lugar, no conceito operacional da conquista da hegemonia na Sociedade Civil como condição prévia para a tomada da Sociedade Política; e, em terceiro lugar, na percepção de que a hegemonia do proletariado sobre a Sociedade Civil produziria, após uma transição, um governo democrático, fundamentado numa vontade coletiva produzida pelo consenso, diferentemente do que ocorria na Rússia, onde a hegemonia sobre a Sociedade Política definia um poder exercido pela força.

A percepção da necessidade da tomada do poder por parte dos trabalhadores e da necessidade de um Estado de Transição não aparecem, portanto, como diferença entre Gramsci e Lênin, razão pela qual devemos entender o “Estado gendarme guarda-noturno” – “a organização coercitiva que protegerá os elementos de Sociedade Regulada em contínuo incremento” –, que precede a Sociedade Regulada, como similar à Ditadura do Proletariado, que precede o fim do Estado, considerando a diferença geológica de que o exercício do poder, neste caso, deverá estar fundamentado, o quanto antes, na Sociedade Civil e no consenso e não na Sociedade Política e na força, e que em Gramsci os aspectos autoritários são claramente estabelecidos como declinantes.

As duas variantes, entretanto, conheceram destinos diversos no que toca aos seus resultados concretos ao longo do século XX. Enquanto o modelo leninista logrou êxito em diversos países do mundo e expandiu as fronteiras do Socialismo Real, o modelo gramsciano nunca foi confirmado, ao contrário, os seus sucedâneos italianos regrediram a padrões políticos socialdemocratas. Por seu turno, após um extraordinário sucesso político, o modelo leninista sucumbiu completamente, tornando-se hoje um fenômeno de natureza arqueológica. O modelo gramsciano, entretanto, continua motivando variada produção teórica de natureza acadêmica e permanece politicamente vivo, inspirando intensa ação política num campo da esquerda que ultrapassa os partidos comunistas.

Feridas por um sentimento de anacronismo, a ideia da tomada do poder por um partido comunista subsequentemente à consolidação da hegemonia na Sociedade Civil no contexto da Crise Orgânica (que funda um Estado gendarme, protetor dos avanços sociais), assim como a ideia de uma hegemonia do proletariado encimada pelo partido comunista vêm perdendo prioridade e substância nas arenas políticas contemporâneas. Isso significa que os pontos comuns entre a formulação de Gramsci e de Lênin vêm sendo progressivamente postos de lado.

Gramsci faz-se atual não pelos desfechos leninistas que enxerga no longo prazo da transição para o socialismo, mas pelo imenso campo aberto pela ideia da guerra de posição e pela construção da hegemonia do proletariado na Sociedade Civil, que fazem o âmago da atuação política da esquerda contemporânea para além dos partidos comunistas. Gramsci inspira assim a esquerda naquilo que tem de não leninista.

O que isso significa?

É o que veremos no próximo artigo.


Ion de Andrade é Médico e professor universitário. É colaborador de uma instituição social ligada à igreja católica num bairro popular de Natal. Está concentrado no estudo dos avanços sociais e da emancipação das periferias como fatores da ampliação da democracia política. É autor do livro “A Hipótese da Revolução Progressiva” que propõe um novo modelo de transição ao socialismo.

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