"Robin Hood ao contrário", por Geraldo Hasse

Artigo publicado originalmente no Século Diário.


Começam a pipocar documentos e manifestos contra a reforma da Previdência. Nada mais justo e lógico: a proposta do governo Temer é uma iniquidade que atenta contra os direitos da maioria trabalhadora. Alegando um déficit não comprovado, quer aumentar o tempo de contribuição, alongar a data das aposentadorias e reduzir os benefícios dos aposentados e pensionistas. Parece um pacto sinistro para aumentar a marginalização social.  

Os trabalhadores com seus sindicatos estão abrindo os olhos e se prontificam a combater a reforma da previdência pública, que está se tornando um ponto de união das oposições fragmentadas pelo golpe contra o mandato da presidenta eleita.

Um dos sinais da disposição de lutar começa a traduzir-se na coleta de assinaturas de parlamentares pela convocação de uma comissão parlamentar de inquérito sobre o alegado déficit da Previdência. Briga difícil que já projeta sua sombra sobre as eleições de 2018, quando o povo deve eleger um novo Congresso e o presidente da República.

Embora conte com a ajuda da mídia chapa-branca, que se agarra no(s) governo(s) no afã de se manter viva em plena transição das tecnologias da comunicação, o grupo de Temer deixa cada vez mais claro que se instalou no poder para ferrar os pobres e beneficiar os ricos, coisa que vem fazendo com o apoio do parlamento, majoritariamente identificado com a plutocracia que financia as campanhas de deputados e senadores. Mas essa situação cinzenta tende a mudar na medida em que for ficando claro quem foi escolhido para pagar a conta da recessão econômica.  

O projeto de reforma da Previdência tem a mesma inspiração elitista da emenda constitucional 95, que congelou gastos primários por 20 anos. Segundo essa visão, filiada ao conceito do estado mínimo, o problema fiscal brasileiro decorre do aumento acelerado da despesa pública primária, ou seja, dos gastos sociais, de saúde, educação, com o funcionalismo, etc. Enfim, das despesas que são realizadas para atender a esmagadora maioria da população.

O argumento do déficit previdenciário é uma balela, como tem sido demonstrado por diversos estudiosos do assunto. A Previdência Social faz parte do  sistema de seguridade social, formado pela Previdência Social, Saúde e Assistência Social. Este sistema é superavitário. Além da arrecadação proveniente da folha de salários (com a contribuição de empregados  e empregadores), o orçamento do sistema de seguridade é composto pelo Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), Pis/Pasep (Programa de Integração Social e Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e a CSLL (Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido).

A receita da Seguridade Social em 2015 foi de R$ 694,97 bilhões e a despesa, de R$ 683,17 bilhões, portanto teve um superávit de R$ 11,8 bilhões. Isso num ano em que a economia recuou quase 4%. Nos anos anteriores, os superávits foram bem maiores. As sobras eram tão grandes que foi criada a DRU (Desvinculação das Receitas da União), que autoriza o governo federal a usar um percentual do orçamento da Seguridade para outros fins, inclusive no pagamento de serviços da dívida pública. No ano passado, esse percentual subiu de 20% para 30%. O déficit previdenciário não existe em si, mas pode ser “construído” por meio de manipulação do orçamento.

Além de ignorar esse item fundamental, o governo tentou induzir a sociedade a acreditar que a Previdência estaria na iminência de falir, deixando milhões de pessoas sem receber aposentadorias, pensões e outros benefícios. Com essa campanha terrorista, o governo “esqueceu” de colocar em seu projeto três ou quatro informações decisivas sobre os bastidores da suposta “crise da Previdência”:  

1 – Omitiu-se que, somente nos últimos seis anos, a Previdência Social renunciou a R$ 270 bilhões em receitas embutidas em projetos de investimentos beneficiados com incentivos fiscais. Se o objetivo da reforma é economizar R$ 678 bilhões em 10 anos, como saiu na imprensa, seria mais eficiente eliminar as renúncias, que favorecem as empresas e oneram o Estado, ameaçando a sustentabilidade da Previdência;

2 - Os gastos anuais com juros e amortização da dívida pública ultrapassam o patamar de R$ 500 bilhões, recursos que saem do Tesouro Nacional e ficam girando nas mãos de cerca de 10 mil famílias de super-ricos nativos e estrangeiros, responsáveis pela ciranda da especulação financeira no chamado Cassino Brasil. Uma redução de 1% nos juros pagos pelo Banco Central representa economia anual de pelo menos R$ 50 bilhões, dinheiro que poderia ser investido em infraestrutura ou aplicado em gastos sociais;

3 – A Previdência Social acumula créditos de R$ 426 bilhões de milhares de empresas devedoras, inadimplentes ou caloteiras conscientes. Esse valor, levantado recentemente pela Associação dos Procuradores da Fazenda Nacional, foi ignorado pelo governo em seu projeto de reforma previdenciária. É verdade que são créditos de difícil realização. Em 2016, a Procuradoria da Fazenda Nacional recuperou apenas R$ 4,15 bilhões, o equivalente a 0,9% da dívida previdenciária total. Segundo levantamento feito junto aos 32 mil maiores devedores, um quinto deles não existe mais como empresa. Mas 80% das empresas estão em atividade, muitas delas discutindo os valores na Justiça ou rolando a dívida num dos tantos Refis abertos pelo governo. A maior devedora é a Varig: mais de R$ 3,7 bi. Há também R$ 1,7 bi da Vasp e R$ 1,2 bi da Transbrasil;  


4 – O governo “esqueceu” a dimensão social da Previdência: do conjunto de políticas públicas existentes no Brasil, nenhuma é mais eficiente do que a Previdência Social, no aspecto de distribuição de renda. A esmagadora maioria dos benefícios, cerca de 80%, é de um salário mínimo, com elevado efeito distributivo. Em cerca de 71% dos municípios brasileiros os montantes transferidos pelos benefícios da Previdência Social são superiores àqueles repassados pelo Fundo de Participação dos Municípios. Dois terços dos benefícios da Previdência Social são destinados a municípios com até 50 mil habitantes.

Cerca de 90 milhões de brasileiros, incluindo o 86% da população idosa, recebem aposentadoria, que geralmente é a renda principal dessas pessoas. Mas de cada aposentadoria dependem mais de um membro da família. Assim, certamente passa, com folga, de 120 milhões de brasileiros que dependem dos recursos pagos pela Previdência Social. O investimento social com a Previdência, em 2015, chegou a R$ 480 bilhões, para dar condições de sustento para esses 120 milhões de brasileiros. Em termos sociais e democráticos, são números que não se comparam a qualquer cifra relativa às camadas superiores da pirâmide de renda do Brasil.

Obviamente é fundamental debater o futuro da Previdência Social, pois caiu a taxa de natalidade e elevou-se o contingente de idosos. Ou, seja, tende a haver cada vez mais gente “encostada” na Previdência. Mas essa discussão tem que ser feita no interesse da maioria da população e não a serviço dos interesses do capital financeiro, que está na boca da botija, esperando o momento de dar o bote sobre um negócio que representa pelo menos 10% do Produto Interno Bruto, sem contar o que já é movimentado pelo sistema de previdência privada.

Lembrete de ocasião


Enviado ao Congresso em dezembro último e já aprovado na comissão de constituição e justiça da Câmara, o projeto de reforma da Previdência pode ser um “boi de piranha”. Ou, seja, foi lançado ao rio para enganar os habitantes das águas; enquanto a peixarada se empenha em destruir a reforma previdenciária, os vaqueanos do governo tratam de fazer passar a reforma trabalhista, que está no Congresso há anos.

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