"Lula não pode ser a normalização", por Luis Felipe Miguel

Artigo publicado originalmente no Blog do Demodê.


Intelectuais e artistas lançaram manifesto pedindo que Lula assuma, desde já, sua candidatura à presidência da República. No tom laudatório e hiperbólico próprio destes documentos, o texto afirma que o retorno de Lula é a única maneira do povo brasileiro recuperar sua dignidade depois do golpe e de todo o retrocesso que o governo Temer promoveu e está promovendo.

Não há como negar que a performance do ex-presidente nas pesquisas pré-eleitorais é impressionante. Lula é vítima de uma massacre midiático, que vem de muitos anos e se intensificou nos últimos tempos. Sofre uma perseguição por parte do aparelho repressivo de Estado que é a ilustração perfeita do lawfare. Não há boato que seja absurdo demais que não possa ser lançado contra ele e, na ausência de provas, sempre há uma grande convicção para condená-lo a qualquer coisa. Ainda assim, é o favorito para 2018. Uma demonstração de que as políticas iniciadas em seu governo de fato beneficiaram significativamente os mais pobres - por mais que tenham sido apenas compensatórias, acomodatícias, tímidas, incapazes de desafiar a lógica social dominante e todas as outras críticas, muitas delas válidas, que a esquerda lhes dirige.

A vitória eleitoral de Lula em 2018 é uma possibilidade palpável. Por isso, a direita não abandona a alternativa de torná-lo inelegível, talvez até de prendê-lo. Uma manobra que pode ter um custo alto; afinal, a condução coercitiva decretada pelo capataz Sérgio Moro, em 4 de março de 2016, foi, de todas as ações que antecederam ao golpe, a que gerou maior reação popular. Mexer com Lula, ainda mais quando ele desponta como forte candidato à presidência, pode ser o estopim para acordar a resistência que ainda permanece adormecida. Essa é também uma das razões do manifesto. Quanto mais a candidatura estiver posta, maior o custo de impedi-la.

Mas essa aposta na vitória de Lula reedita a ideia, que o golpe de 2016 deveria ter enterrado, de que a solução para a crise política se dá por meio da recomposição de uma maioria eleitoral democrática e progressista. Ora, a derrubada de Dilma mostrou exatamente a fragilidade das “regras do jogo”. A maioria eleitoral é impotente se não encontrar, na capacidade de mobilização popular, os meios para se impor.

Sob certo ponto de vista, a vitória de Lula pode significar o desfecho perfeito para o golpe de 2016. É verdade que o ex-metalúrgico é odiado, que muitos dos que foram às ruas de camiseta do CBF devotam a ele uma raiva insana, parte pelo que fez, parte pelo que simboliza. São pessoas que preferem ver Belzebu no Planalto a encarar Lula como presidente de novo. Mas, como diz um aforismo de autoria incerta, que circula pelas redes sociais, “a classe dominante não tem ódio. Tem astúcia. O ódio ela terceiriza.”

O realismo político fez Lula aceitar limites muito estreitos para a transformação social no Brasil. O lulismo é a consequência disso: um projeto desmobilizador, para não assustar a classe dominante; inclusivo, mas não igualitário, para não ameaçar os privilegiados; voltado a reduzir a pobreza sem tocar na apropriação privada do fundo público. Foi uma opção de menor atrito para fazer frente às premências da condição de vida da maioria do povo brasileiro, uma opção que pareceu exitosa, mas que a derrubada de Dilma mostrou que atingira seu extremo. Para nossas elites, até um pouquinho de igualdade já é demais.

Desde o golpe, Lula e o campo majoritário do PT têm emitido sinais ambíguos para a resistência popular. Se sua candidatura representar um lulismo 2.0, isto é, turbinado para se adaptar aos limites ainda mais estreitos que as classes dominantes estão estabelecendo para a expressão do conflito político, uma nova presidência de Lula significará a normalização da nova ordem, mais perfeita do que seria possível sob qualquer político conservador. Um presidente “de esquerda”, mas acomodado a um cenário em que os direitos estão perdidos, a economia está mais desnacionalizada e a Constituição de 1988 foi transformada em escombros. E a luta popular novamente canalizada para as eleições, ainda que se saiba que seus resultados podem ser revistos quando interesses poderosos se unem.

Os coxinhas podem tremer de ira, mas para o capital um resultado destes estaria longe de ser ruim. É por isso que nunca é demais reiterar: não podemos reduzir a luta política à sua dimensão eleitoral ou mesmo institucional. Não se trata de ignorar as eleições, mas sim de não vê-las como o objetivo principal. A resistência que vier das ruas há de se espelhar nas urnas – mas o polo dinâmico, que imprime a direção, precisa estar sempre nas ruas.

Qualquer candidatura, para se credenciar a representante do campo popular, precisa incorporar esta percepção. O objetivo não pode ser conquistar um cargo, por mais poderoso que ele possa parecer, e se adaptar a seu exercício nas condições hoje estabelecidas, mesmo que com a intenção de minorar as agruras das classes populares. O objetivo é o desfazimento do golpe, o que requer o enfrentamento às claras com os interesses que o produziram. Se isso não estiver bem nítido, esta candidatura será nossa adversária. Mesmo se for a de Lula.

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