Dilema das ideologias num mundo de incertezas, por José Carlos de Assis


No insuperável “A Era da Incerteza”, o genial economista norte-americano John Kenneth Galbraith observou que, antes dos anos 70, todos, seja os da direita, seja os da esquerda, sabiam exatamente quais eram seus lados e para onde queriam ir. Essa “era de certezas” sucumbiu a partir dos anos 70 num turbilhão de crises e indefinições políticas, disseminando tremendas dúvidas ideológicas nas diferentes correntes de pensamento. Grande Galbraith! Soubera ele o que adviria no século XXI e ficaria escandalizado com o grau ainda maior de extremas incertezas que dominam o mundo contemporâneo, sobretudo no Ocidente.

Por exemplo, o que é hoje alguém de direita? Dizia-se de direita quem era um conservador, parado no tempo. Entretanto, os direitistas de hoje se apresentam como reformistas. Querem reformar a Previdência, as leis trabalhistas, o sistema de saúde. É fato que seu objetivo é retirar direitos sociais nessas áreas, mas isso nada tem a ver com conservadorismo de um ponto de vista semântico. Para a direita contemporânea o aparato criado com a economia do bem-estar social, em suas diferentes versões e diferentes escalas, deve ser destruído. Na terminologia deles, deve ser reformado.

Mas o que é alguém de esquerda? Dizia-se do esquerdista que queria reformas sociais. Foi graças às pressões de esquerda que se construiu na Europa o Estado de bem-estar social, produto de pactos sociais que consideraram a necessidade de apaziguar tensões internas com o medo do comunismo no plano externo. Entretanto, a esquerda hoje é essencialmente conservadora. Ela tem como prioridade conservar o que foi conquistado. A luta política que se trava no Brasil hoje, em torno da PEC-55/241, a PEC da Morte, nada mais é que a luta pela manutenção de direitos. Não ceder direitos é a prioridade dos movimentos sociais.

É claro que essa confusão no nível das agendas tem profundas repercussões psicológicas nos movimentos progressistas. As pessoas são obrigadas a raciocinar com condicionalidades. Sou da esquerda, sim, mas minha prioridade não é ter mais direitos, mas segurar os poucos que já tenho – pode perfeitamente justificar-se alguém que, no passado, certamente se classificaria como de esquerda reformista. A confusão ideológica não para aí. O esquerdista do passado não tinha nenhum escrúpulo em considerar-se revolucionário. Caso contrário, seria classificado como pequeno-burguês. Hoje poucos apelariam às armas.

Se essa confusão ocorre no plano ideológico, no nível mais fundamental das propostas econômicas ela vai à exacerbação. A esse respeito, nada mais exemplar que os governos Lula e Dilma. Não há muita gente que, sem muito reflexão, discordaria de que a “esquerda” brasileira chegou ao poder com o PT em 2002. Entretanto, que “esquerda” é essa, do ponto de vista econômico? A área econômica, desde o primeiro governo Lula, foi entregue a neoliberais: Antônio Palocci, na Fazenda, e Henrique Meirelles, no Banco Central. Com a saída escandalosa de Palocci, assumiu Mantega, que manteve, em seu longo mandato, as mesmas linhas neoliberais.

Meirelles continuou no posto chave do BC no segundo mandato como homem mais forte da economia, mantendo a taxa básica de juros em níveis estratosféricos. Dizer que isso é uma política de “esquerda” seria uma metáfora de mau gosto. No primeiro mandato de Lula houve uma tímida tentativa de mudar a política monetária, mas aparentemente sem consenso no governo, levando a um recuo. E, nos primeiros meses do segundo mandato, aconteceu o inacreditável: a nomeação de Joaquim Levy para a Fazenda, numa capitulação completa e irredutível ao neoliberalismo.

Essas “incertezas” de um governo dito de esquerda que trocava de papel com a direita chegaram ao paroxismo quando a corrente dominante do PT, em desespero ideológico, produziu no início de 2015 um documento fulminando com a política econômica. De certo modo, isso enfraqueceu Dilma e preparou o terreno para sua queda, na medida em que lhe faltou âncora política em sua própria base. Foi uma situação de tragédia grega: o PT fez o que tinha de fazer, por razões ideológicas, e Dilma reagiu da única forma que podia reagir, a saber, declarando que o PT não era governo. Então, de que lado ficaria a “esquerda”?

Vou tentar responder a essa pergunta. Os que se identificam, hoje, com os ideais profundos da Revolução Francesa – liberdade, igualdade, fraternidade – podem atuar politicamente, com eficácia, sem se colocar na perspectiva da velha topologia das assembleias de Paris. Em lugar de uma dicotomia que perdeu o sentido, seria mais oportuno abraçar com simplicidade os ideais de promoção da justiça social, tão valorizados pelo Papa. Em economia, isso significa um Estado forte, um sistema tributário progressivo, e uma política clara de promoção do bem-estar social. Querem um bom modelo? A China progressista, para a economia; e a Índia democrática, para o sistema político.

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