Neoliberalismo, Racismo e a PEC 241, por Ivan Martins


Darcy Ribeiro costumava dizer que o racismo — uma ideologia desprezível em qualquer parte — era ainda mais intolerável no Brasil, porque se voltava contra a essência do que somos como povo: uma gente escura, misturada e graciosamente impura.

Ainda assim, o racismo científico foi abraçado pelas classes dominantes brasileiras no século XIX e sobrevive ainda hoje como ranço de atraso e vulgaridade no comportamento dos privilegiados — além de fundamentar informalmente a violência policial, jurídica e econômica contra os pobres.

Nos últimos dias, com a discussão em torno da PEC 241, fica claro que o neoliberalismo - outra ideologia estranha à realidade do Brasil - também contaminou de forma profunda o pensamento do país, contribuindo para a disseminação do preconceito e da mistificação na vida pública.

Neoliberalismo não tem nada a ver com racismo - evidentemente - mas seus efeitos sobre a vida dos brasileiros pobres são igualmente implacáveis. É outra ideologia que passa por ciência e serve de justificativa à minoria que detém poder e dinheiro no Brasil.

Num país imenso, atrasado e desigual como o Brasil, que precisa do Estado para estimular desenvolvimento econômico e promover inclusão social, o neoliberalismo tornou de bom gosto criminalizar o investimento público, amaldiçoar os impostos e tratar como populismo barato programas sociais que beneficiam os brasileiros pobres - como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e Fies.

Parte dessa mentalidade se explica por 10 anos de incessante exposição da corrupção envolvendo os governos do PT, mas o sentimento recente de asco pelo governo e de suspeição em relação ao gasto público não responde sozinho pela unanimidade em torno da PEC 241, que se propõe a nada menos que revogar o pacto social brasileiro criado pela Constituição de 1988.

Ao governo bastou acenar com a ideia arbitrária de congelar gastos por 20 anos para que a classe média se erguesse em aplausos e fosse montado ao redor da PEC 241 um consenso de elites como não se via desde o Plano Real.

Esse é o efeito intelectual mais nefasto do neoliberalismo: a concordância acrítica, baseada em desinformação e preconceito. Alguém propõe lobotomia orçamentária - é isso que representa a PEC 241- e milhões aceitam sem pedir explicações, porque ouvem há décadas que o Estado brasileiro gasta demais. O dogma neoliberal torna o debate supérfluo.

Os números, entretanto, contam uma história diferente. Você cansou de ler e ouvir que Dilma gastou como alucinada, e por isso estamos neste buraco, mas a verdade é que os gastos nos governos dela (entre 2011 e 2014) cresceram menos do que nos anos anteriores.

Por que, então as contas do governo explodiram, como nos dizem? Por razões que nada têm a ver com os gastos que a PEC pretende congelar.

Em primeiro lugar, as receitas do governo despencaram por causa da recessão. Com a queda na atividade econômica, a queda na arrecadação de impostos foi de 6% em 2015 e continua caindo 6% este ano. Por isso as contas do governo não fecham — porque ele está recebendo menos, não porque está gastando mais.

Mas o senso comum, disseminado pelo neoliberalismo, diz que governo é como a casa da gente: não importa se aumentou o gasto ou diminuiu a receita; se existe um déficit, tem de cortar. Só que governos não são casas de família. Quando o governo para de gastar, ele diminui a atividade econômica do país inteiro, cria inadimplência e desemprego, e arrecada menos impostos — o que faz as contas públicas piorarem, não melhorarem.

Foi o que aconteceu no Brasil em 2015.

Dilma nomeou um neoliberal para a Fazenda e a primeira coisa que ele fez foi cortar gastos e apoiar a elevação dos juros pelo Banco Central, para liquidar a inflação. Essa combinação de juro alto com corte de gastos do governo — a queda de gastos federais em 2015 foi de 2% em termos reais — nocauteou as empresas, paralisou a economia, acabou com a arrecadação de impostos e fez crescer o déficit.

Os defensores da PEC 241 não contam outra coisa importante: que a elevação dos juros respondeu por 85% do crescimento da dívida pública em 2015. Não foi a gastança, foram os juros os responsáveis pelo descalabro nas contas públicas.

Estranhamente, a PEC do Temer não fala em teto para os juros, porque os neoliberais acham isso inadmissível. Com a taxa de 14,25% ao ano que o governo paga no Brasil — os juros mais altos do mundo — lucram estratosfericamente os bancos e lucram espetacularmente os rentistas, aquelas pessoas que têm muito dinheiro aplicado. Esses dois grupos constituem o verdadeiro poder econômico do Brasil. Temer não mexerá com eles.

Outra turma com quem ele não vai mexer, embora consuma muito dinheiro público, é a dos aposentados do setor público. Não estou falando da enfermeira do posto de saúde, do bombeiro ou do professor de escola primária, que se aposentam ganhando tão pouco quanto ganhavam na ativa. Penso em gente como Temer, que, além do salário de presidente, recebe 24 mil reais como procurador aposentado do Estado de São Paulo, desde os 55 anos. Penso em juízes que se aposentam com salários vitalícios acima de 30 mil reais por mês.

Por que essas pessoas recebem fortunas enquanto gente comum se aposenta no setor privado com teto de cinco mil reais? Esses privilégios arrebentam as contas do país, mas a PEC 241 não vai tocar neles. Obscenamente, Temer acena no futuro com uma reforma da Previdência que fará todos trabalharem até os 65 anos, para garantir que privilegiados do setor público como ele recebam suas pensões milionárias.

Seremos um caso único no mundo: os brasileiros pobres, que começaram a trabalhar antes dos 15 anos de idade, terão de ficar 10 anos a mais no batente para garantir o pagamento das aposentadorias de luxo de gente como Temer e seus amigos do Judiciário, os brasileiros Classe A.

Quando se olha para isso tudo, a PEC 241 começa a parecer uma grande operação para tirar recursos dos brasileiros pobres - que são os principais beneficiados pelo serviço público - e transferi-los para os brasileiros ricos, na forma de juros bancários e aposentadorias nababescas.

Como uma ideia assim avança no Congresso com anuência da sociedade? Primeiro, porque a população está desinformada. O debate sobre a PEC 241 é para lá de superficial. Quando o PIB fecha questão em torno de um tema, é duro fazer a discussão avançar. Segundo, porque, ao longo dos anos, os neoliberais convenceram uma parcela enorme dos brasileiros instruídos de que qualquer corte de gastos do governo é bom para o país.

As pessoas acreditam - porque ouvem e leem todos os dias - que a redução de gastos públicos vai estimular o investimento privado, produzir crescimento e gerar prosperidade. Mas isso é crença, pura ideologia. Não há comprovação factual. Pelo contrário, os estudos mais recentes do próprio FMI (que por décadas pregou o neoliberalismo) mostram que cortar gastos em momentos de crise é um tiro no pé quando se trata de crescimento - além de concentrar renda e ferir os mais necessitados.

Exemplos de vários países mostram que quando se cortam gastos drasticamente o que se consegue é desemprego e deterioração drástica dos serviços públicos - o que, por sua vez, gera ainda mais recessão. Essa é a fórmula que os neoliberais de Temer querem impor ao Brasil.

O mundo aprendeu com a crise de 2008 que austeridade draconiana produz riqueza para os ricos e desastre para o restante da sociedade. Último país do mundo a abolir a escravidão, o Brasil pode ser também o último a lançar sua população num experimento neoliberal extremo - o congelamento de gastos públicos por 20 anos. Melhor seria evitar essa loucura e suas terríveis consequências.

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